Tinha chegado o dia em que sentia o fim da infância,
mesmo que os cabelos brancos lhe dissessem, que essa há muito que não existia.
O tempo estava esquecido num gemido abafado ou num sorriso áspero e remoto na
profundidade da memória.
Mas hoje acordara tenso, despido da ilusão roubada
num mundo de aparências, onde a maior era sem dúvida ele. O tempo migrara-lhe
da mente, recusa feita à vida surda e cega que nunca o deixara envelhecer. Que
importavam os caminhos armadilhados na pele, rugas cativas da contagem dos dias
e das horas?
Até ali olhara-se e apenas vira um miúdo ladino mas
sonhador, ou até um jovem feito de vagarosa eternidade. Pouco lhe interessava a
tosse dos olhos virando lágrimas ou as curvas escorregadias da boca a dizerem
não. A tal juventude agarrava-se à pele e escondia-se nos bolsos fundos das
calças. Os ossos não gemiam e o corpo ainda cantava mesmo que a solidão lhe
enchesse a boca de sal a afundar-se feito mar dentro do estômago.
Não percebia a razão de agora se sentir diferente,
nem o facto do silêncio esquivo não lhe saber a paz mas a morte anunciada.
Curiosamente nunca pensara muito nisso, naquela ilusória juventude, fruto de
uma imperfeição sabiamente agarrada aos sentidos.
Não era um fantasma à deriva, nem um louco preso a
esfaimados desvarios. Apenas achava impossível que o seu tempo findasse e que
aquilo que via e sentia fosse somente resultado de um estado de espírito
matreiro, adoçado e maquiavélico.
Continuava a não perceber aquela transformação.
Olhava-se no espelho onde um desconhecido o enfrentava, desafiador. Há coisas que levam tempo, como
se fossem pegajosas e escorressem para
parte incerta onde nunca as encontramos.
Era assim aquele olhar vindo do espelho, uma boca a
abrir e fechar balbuciando palavras para ouvidos moucos, enquanto ele se
refugiava numa zona de conforto onde não visse, nem ouvisse, a mente desfragmentada e impúdica assumindo
aquele que ele era.
Não só o corpo lhe era estranho, como também aquela pungente
sensação de peso e a condescendente
sabedoria de quem viveu muitos anos. Pela primeira vez, um medo frio suou-lhe
da pele e roubou-lhe as certezas redondas, perfeitas e enfadonhas.
Talvez que a sua escolhida solidão, sem mulher, sem
filhos, sem enredos familiares, o
tivessem poupado ao deslizar do tempo, qual Peter Pan sem Wendy no
horizonte.
Afligiu-se a tentar desesperadamente agarrar a
criança perdida que incauta lhe fugia, a respiração instável a dizer-lhe que
tinha um coração antigo, enquanto o
corpo lasso se despia da casca jovem e se impregnava de males não sarados.
E os pontos de interrogação enfileiraram-se seguindo
o caminho inverso ao da verdade.
E tão perto que ela estava, como se o abraço
escondido da dúvida, finalmente o agarrasse e se desfizesse.
Atirou-se de peito feito a essa verdade, a juntar
todos os nãos até perfazer um sim, vestido com os medos do papão escondido da
infância.
E percebeu. E enquanto percebia, olhava. E depois de
olhar, cheirou a memória de quem muito viveu e sentiu nas mãos o que
magneticamente as ocupava.
Uma estrela dourada e cintilante acendeu-lhe nas
veias um calor morno num quase cheiro de caramelo queimado. Tocou-lhe e sentiu
chispas que lhe encheram os olhos de imagens de uma vida.
A estrela da avó! A estrela
cheia de histórias, velhinha e frágil, que hoje , não sabia porquê, fora
resgatar a uma gaveta perdida .
Súbito , todas as memórias se desfizeram nele como
um cataclismo.
Aquela estrela era o seu cordão umbilical, a sua
rota. Como tinham sido belos aqueles dias de Natal junto à chaminé da avó!
Lembrava-se tão bem do alguidar onde sovava a massa
que depois de frita e polvilhada de açúcar, ele trincava e lambia como se não houvesse
amanhã. O abraço da avó só cabia no mundo dos sonhos, de tal modo era mágico e
reconfortante. Os dias de Natal tinham o aconchego de uma mão cheia de
sorrisos e de raios de sol resgatados à
tristeza.
Mas nada, nada, se comparava à estrela dourada que
ele se habituara a ver no alto do pinheiro ainda a cheirar a resina. E as
memórias rangiam nele como cordas velhas e esticadas, assaltando-o como feras à
solta. Por muito que as datas e os nomes se esfumassem , por mais que os anos e
a vida se cansassem dele, tudo desaguava em catadupa, deixando-o desarmado, com
o destino a pesar-lhe nos ombros.
E enquanto lá fora o Natal marcava a vida de tantos,
ele compreendia que fora essa lembrança que o levara a descobrir a estrela
refugiada num canto obscuro da gaveta.
Curiosamente,
este último Natal roubava-lhe o abrigo da pseudo imortalidade. Passou a
ter anos e vidas acumuladas em cada poro, em cada batida do coração.
Mas tal como lhe deu idade, também lha retirou.
Apertou forte a estrela das memórias e de novo foi
criança.
E sendo-a, sonhou e voou.
Partiu e nunca mais voltou.
© Margarida Piloto Garcia in "LUGARES E PALAVRAS DE NATAL III" publicado por LUGAR DAS PALAVRAS EDITORA 2014