sábado, 21 de junho de 2014

Estio








 “Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo.

José Saramago









Estio



Nunca mais chega o verão dos teus braços a prenderem-me na beira do abismo.

E o fim do mundo à espera num calendário rasgado sem saber quantas dores por ele passam!

Nunca mais o dia quente das mãos escondidas a escreverem debaixo da mesa e nas tuas pernas, alucinações geométricas e arreliadas de carência.

Nunca mais chega esse verão apressado a escorrer seiva entre nós.

E o carro veloz e a minha mão galopando no teu corpo, cria de um cio a engrossar num arco fletido.

Nunca mais, nunca mais, a pele preocupada e os caminhos internos exaustos da espera.

Na ditadura do meu corpo , a tua revolução exige o atrevimento de viver, de ser única

sem acomodadas ânsias e culpas ressequidas.

Nunca mais chega o verão, e eu sequestrada nas palavras, em malabarismos fora de prazo.






© Margarida Piloto Garcia



sexta-feira, 6 de junho de 2014

Poeta suicidado





Amanheceu num dia onde a sombra do corpo não cabia na casa e as mãos se esvaíam
desde os pulsos até à ponta dos dedos em palpitações de arame farpado
Alongou os braços impertinentes para abrigar a inusitada lágrima
Sugou os lábios cobardemente ansiosos e resistentes, inflamados de uma luta
sem máscaras
Olhou-se num divórcio silencioso como se as cores lhe tossissem dos olhos e o futuro castrado
se afundasse sem remos
Atreveu-se a escrever um verso sem cauda de cometa, atropelado pelo vazio do corpo
E de repente a vida afunilou, bebida de um trago, e o esquecimento levou-lhe a insanidade
à galáxia presa nos cabelos
O poema perfeito só se escreve depois.


© Margarida Piloto Garcia  in "II ANTOLOGIA DE POETAS PORTUGUESES, ANTOLOJIE DE POEJI PORTUGHEZI"-publicado em Portugal e na Roménia-EDITURA PIM-2019

© Foto de Solve Sundsbo