Sente-se envolta numa roupagem débil, semi-palpável,
um desconcertante invólucro trespassado por calafrios.
Um avião corta o céu cerúleo e o som explode-lhe na
boca, num quebrar de ondas de saliva de encontro aos dentes.
Há um aroma agreste feito da humidade que se lhe
cola aos cabelos.
Não sabe se há-de ir embora, ou ficar mais um pouco
exposta aos elementos, mas resguardada naquele pedaço de relva, que se
distingue da terra castanha e ocre do cemitério.
A ira ainda não a deixou. Pergunta-se se algum dia o
fará e fica aturdida e temerosa que tal aconteça. O que sente é tão devastador
que não consegue acalmar o corpo.
A boca está seca, a garganta irritada. A náusea é um
algoz potente a revolver-lhe as entranhas. Vomita aos arrancos tentando expelir
a raiva que sente e a perfura como espada afiada.
É imperativo que se livre daqueles sentimentos
parasitas que a devoram. Mas como?
Não suporta mais as intermináveis manifestações de
pesar que lhe parecem cuspidas na sua direcção. Pior ainda, aguenta numa
repugnância pungente, os toques pseudo-afectuosos, os beijos que lhe escorrem
na pele e a fazem estremecer.
Resiste o mais que pode e sabe, às conversas, às
tentativas de a sondarem e saberem mais, de remexerem fundo na sua vida. Os
predadores cercam-na, como se ela fosse carniça ao seu dispor, em busca de
pormenores, naquela ânsia que a turba tem de saber da vida alheia.
Ela encerra-se no vestido discreto, de um antracite
reconfortante, uma espécie de armadura contra os invasores da sua intimidade.
Sabe que a imagem que passa é a de uma mulher
petrificada, gélida e sem sentimentos. Não tem dor nos olhos e nem uma lágrima
lhe cruzou o rosto.
Ninguém sabe que o rio há muito secou no leito. Os
soluços que durante anos lhe descontrolaram o corpo, foram cuidadosamente
arrumados numa caixa da qual perdeu a chave.
Enrola atrás da orelha um caracol ainda viçoso do
cabelo branco e curto. O gesto lembra-lhe outros, os primeiros que os dedos de
Miguel ensaiaram no seu rosto.
Cerra os lábios com força, porque assustadoramente
cresce-lhe na memória, o dia em que os dedos lhe ficaram marcados na face.
Apesar das ameaças, essa foi a única vez, mas o efeito foi o de uma tatuagem eterna,
algo que ninguém vê mas ela nunca deixou de sentir.
Envolta na sua armadura cor de aço, o seu olhar é um
radar a sondar todos os que passam e lhe deixam os pêsames.
Será que eles sabem como gastou o caudal de
lágrimas?
Será que adivinham como foi possível transformá-la
numa terra árida de desejos contidos e
onde nada brota?
Muitos anos antes tinha sido uma sonhadora, dedicada
à causa de formar família, de singrar naquele rumo, plena de todo um enorme
manancial de amor.
Nada dera certo por muitos esforços que fizesse. Em
cada passo dado, a vida deixou-lhe o gosto amargo dos falhanços e uma certeza
começada a construir, de que algo estava
errado nela. Algo nos seus genes, na sua matriz, estava contaminado. Nas suas
veias devia correr uma infecção que jamais seria curada.
Miguel contribuíra, sem dúvida, para que tal acontecesse.
Submetera-a, subjugara-a, traindo-a e humilhando vezes sem conta. A ira contra
ele era medonha mas a principal raiva
sentia-a por ela própria e pela sua cobardia.
Não sabe bem porquê, mas os sonhos nunca a tinham
abandonado, tornando-se na única jangada disponível para não se afogar.
Tinham passado muitos anos, até ele se acalmar e
serenar perante a vida.
Mas que restara dela? Que restara dos dois?
Ele parecia ter encerrado a vida. Existia sem a ver
e ouvir. Ela compreendia agora que ele a
matara. Antes trocava-a, agora ignorava-a.
Sara recusara-se a envelhecer, a calar o corpo, a
desistir de si.
E ao fim de tantos anos, a ira apossou-se dela como
um veneno de acção lenta mas letal.
Pouco a pouco, aquela raiva surda começou a
invadi-la. Num dia desenhava-lhe uma nova ruga, noutro esculpia-lhe magramente
as maçãs do rosto ou branqueava-lhe mais o cabelo revolto. Todos os dias a ia
secando como algo visceral e imundo.
Tentara muitas vezes libertar-se daquele anzol sem
contudo o conseguir.
E um dia, tranquilamente, Miguel morreu enquanto
dormia. Sem dores, sem pavores, deixava-lhe em testamento toda a ira que nela
plantara.
Nesse dia explodiu pela casa, partiu objectos, rasgou
roupa, dançou numa espécie de estertor, como uma boneca partida, uma marioneta
sem fios.
Gritou para as paredes o que guardara em si, tentando que tudo o que
sentia desaparecesse com ele.
Ali, enfim sozinha, naquele pedaço de relva que a
sustém, sabe que ainda não se livrou daquela ira. Falta-lhe algo, uma última
catarse que a exorcize.
Caminha devagar, pisando a gravilha num som
acidamente corrosivo e irritante, tentando esmagar a vida perdida.
Nas paredes em frente ao cemitério, contrastando com
o imaculado dos seus muros, um grupo de jovens grafita frases e desenhos.
E de repente, num acto que denomina de pura loucura,
mas que lhe parece genial resolve falar com eles. Nem são precisas muitas
palavras porque eles lhe sorriem e incitam de um modo que nunca ninguém fez.
Munida de uma lata de tinta, começa a escrever o
sentir amordaçado. Os “companheiros” incitam aquela mulher de cinza e cabelo
branco que saiu do cemitério.
E ela escreve e escreve, iradamente
Raiva
Farpas afiadas a deixar esquírolas
Raiva
Rasgões violentos cuspidos da pele
Raiva
Um corpo em desvario a partir cortinas ocultas
opacas de tanto serem rasgadas e refeitas.
Negro, breu e sem vestígios de um raio de sol.
Negro, encardido com a mágoa
que os loucos não reconhecem.
Vontade de voar e cair livremente do espaço
a abraçar as árvores, a ser absorvida pelo mar,
a mergulhar na relva e nas azedas amarelas.
Pele a arder e púrpura nos olhos
chispas a chicotear paredes
e a sair lá para fora num bando de asas rutilantes.
Raiva
Negro, vermelho, cinza com laivos, laranja ardente
Raiva, raiva, raiva
E um coração a rebentar violência
e a esquecer doçuras.
Perante as palmas dos recentes “amigos” sorri
envergonhada e lê e relê tudo o que saiu dela.
Inspira profundamente o ar que lhe parece agora mais
frutado e leve.
Afasta-se quando o crepúsculo cai levando na face o rasto
salgado da primeira lágrima.
© Margarida Piloto Garciain- 7 PECADOS II- publicado por PASTELARIA ESTUDIOS EDITORA-2013
© Pintura de Djordje Prudnikoff