sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Dicotomia



Fizeste  amor comigo
como se de sexo se tratasse.
O corpo tinha a perversão do poder
e aprisionaste em mim o desejo louco
lúbrico e insano nas pernas a tremer.
Não houve remorsos
nem sombras
nem medos.
Nem mesmo palavras de esperança
de luz
ou redentoras frases.
Só não percebeste
que era mesmo sexo o que precisava
mas libertado nos teus olhos
como se de amor se tratasse.



© Margarida Piloto Garcia









domingo, 30 de novembro de 2014

Pensamentos soltos




De que servem os braços onde não cabes?
Lianas sem flor azul nascidas em mãos de adaga.
De que serve a pele, plena de um momento cheio
desde o dia em que a madrugada acordou o meu pulso?
Essa pele onde as armas escreveram desalinhadas vogais
e os dias naufragaram no vício maduro e intrometido.
De que servem os olhos, frestas incendiadas?
Nem anjos nem demónios se escondem
nas palpitações dos cílios que beijaste.
De que serve a boca onde as estrelas acordam?
De nada, sem essa respiração suspensa sobre mim
e a tua invasão destes meus lábios cerrados.



© Margarida Piloto Garcia

© Foto de Joné Reed





quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Parto



Do ventre solta o fio do grito e corta a paixão umbilical
tão macia e voraz que não a dessedenta
Leva o olhar a fingir uma reza até que nada veja
nem o grito que sobe, nem as mãos desvairadas
a moldarem em cálculos infinitesimais o lugar vazio.
O grito sobe e o sismo viaja nos caminhos do corpo
numa pornografia de tendões e músculos
numa ode orgíaca de pele e rios caudalosos
Engole as palavras a fingir que é saliva
e só o grito paira sobre si, agora morno e pálido
agora sonolento, até que o gere uma outra vez




© Margarida Piloto Garcia


© Foto de Jaroslaw Datta









segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A carta



Não, não cerres os olhos para não me leres. Não te atrevas sequer a rasgar a folha sépia que encontrei para te chamar à razão. Escolhi-a pela sua aparência nostálgica a lembrar outros tempos, pelo seu toque esmaecido para melhor temperar a raiva.
Não deixes cair lágrimas amargas diluindo a tinta azul da china com que a escrevi. Garanto-te que a escolhi num espécie de namoro de outras eras, bucólico e primaveril.
Mas nada disso interessa. Agora aqui, estamos apenas nós e quero que tenhas a coragem de ler estas palavras escritas com força e mágoa.
Não te escapes de novo em malabarismos vários e em piruetas de explicações. Não faças de tudo um circo. Não cries raízes de desgraça, nem desistas das palavras. Não amarfanhes a voz, nem emudeças os gestos em afectos bruscos.
Não, não e não.
O teu imperativo tem de ser um sim à vida. Um sim canoro e estridente, uma viagem de boca escancarada a sugar sangue-vida.
Sê tudo o que sabes e nunca uma bengala ou uma migalha devorada pela voracidade da vida.
Lê o que te escrevo enquanto te olhas no espelho rasgando as neblinas do passado.
Não, não é uma emboscada, nem uma astuta ilusão, nem mesmo um impertinente  passo de dança. Falo-te da vida, essa meretriz tão amada e odiada, essa louca espartilhada entre anos mastigados e outros levados num bater de asas e curvas sem regresso.
Tens de te erguer e continuar. Não importa se ela te cegou a estrada e te entornou os desejos no chão. Tu ainda tens olhos para te estatelares ao comprido no amor e boca para gritares despenteadas paixões. Tens mãos para rirem no corpo e atarem laços no coração.
Nestes anos, raras vezes me ouviste, ou ouviste e não te deste ao trabalho de entender.
Recorri a todos os subterfúgios, atrevendo-me a semear em ti todas as revoltas. Debateste-te e esmurraste muitas vezes o pó dos dias numa loucura voraz e selvagem.
Mas saíste sempre arrepiado por entre estreitas margens, a sorver o medo espesso de magoar os outros.
E tu?
Não és gente e carne e alma contrafeita? Não és poema sem rimas? E tu?
Porque não rasgas os contratos e foges dos vampiros que te emolduram como um anjo viciado?
Hoje, mesmo que te  jogues no ar como um trapezista ébrio, mesmo que percas os braços e as pernas, mesmo que nem os músculos, nem as veias,  respondam aos apelos, não perderás o norte e lerás o que escrevo.
Então o frio escorregará dos teus ombros e os vendedores de banha da cobra tremerão antes de tentarem castrar-te o destino.
Ainda é tempo. Ainda não gastaste as 7 vidas que um dia um gato te deu.
O delírio de um improvável céu azul ainda se sustenta numa arquitectura frágil mas desperta.
Por isso, vais ler-me e erguer-te como os guerreiros fazem, porque as batalhas não se ganham em acomodadas camas.

Muita força da sempre tua


Consciência



© Margarida Piloto Garcia in "CARTAS"-publicado por LUA DE MARFIM -2014  







sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Destinos paralelos




Ela

 Vejo-te da minha janela, quando o sol se descobre numa letargia que parece apaziguar os meus anseios. Ele chega de mansinho embrulhado numa estranha neblina matinal e entrega-se a um ritual sem pressas.
Tu não. Vejo-te assomar de supetão à janela e expandires-te num abraço à alvorada. Escondida no cortinado esvoaçante desenho com os olhos cada centímetro da tua pele. Não sei bem porque o faço . Apenas sei que após a primeira vez, tudo se transformou num hábito que me foi viciando e tornando cada vez mais cativa de ti.
Tudo em ti é de uma velocidade quase dançada, como se fosses uma chita a correr na pradaria ou um vulcão a irromper na paisagem.
Encerro-me de olhos fechados no teu abraço ao sol e o calor do dia atinge-me em cheio como uma pancada surda mas grávida de prazer.
Passas as mãos pelo cabelo que brilha nas últimas gotas de água que lhe deixaste ficar. Quase lhe posso sentir o aroma e entretenho-me a saboreá-lo na língua e nos lábios, ao mesmo tempo que um calafrio me lembra que é necessário regressar à realidade .
Tem sido difícil fazê-lo desde o dia em que chegaste e ocupaste a janela do lado.
Passei a monitorizar as tuas vindas à janela como se eu fosse um pássaro atento e vigilante na procura do valioso alimento. E tu és tal. Enches os meus dias da perfeição com que te revestes aos meus olhos. Umas vezes és um deus nórdico, outras um cavaleiro mítico, mas sempre tens algo que foge à rotineira classificação de humano.
Mas sei que o és porque te sinto daqui. O teu cheiro chega invasivo mas sedutor e eu de gaivota curiosa passo rapidamente a ave de rapina, os olhos brilhando na predatória busca da presa.
Mas as noites são ainda as piores horas que o dia me traz.
Chegas e a lua escorre pelo teu corpo desenhando-te e esculpindo-te. Ansiosamente seguro o meu despudorado arfar enquanto te debruças, os olhos a sondar a noite.
As minhas mãos são gatunos a roubar o silêncio do meu corpo, intrusos a explorar a solidão. Dançam-me no corpo loucas e vorazes e empurram-me de encontro à janela numa posse quase agonizante.
Tu nada sabes destes meus pensamentos e sentires. Nunca me olhaste ou sorriste. A ti basta-te existir nessa janela enquanto me fazes e desfazes ao longo das horas em que nela te debruças.
Eu não sou capaz de me furtar à paralisia que me tolhe . Engasgado na garganta está mais do que um olá. Está um grito rude que me assola, a rasgar toda a sensatez  e a despir-me de tudo o que em mim é postiço e imposto.
Sei que vou morrer de sede por não te beber os lábios e ficar cega de tanto te olhar. Tu jamais serás meu.

Ele

Quando vim para aqui morar reparei de imediato em ti. Senti-te pequena como um pardal  mas explosiva no modo como o teu corpo se mexe.
Escondes-te atrás dos translúcidos cortinados mas eu consigo descobrir-te quando o sol num passe mágico te lança um dos seus raios. Envolta neles pareces uma pequena fada encerrada num mundo mágico e a lutar para alcançar a liberdade.
De manhã venho mais cedo à janela só para te ver meio escondida . Se tu soubesses como me despertas para o sol!
Saio para trabalhar mas não consigo paz durante o dia. Numa tremenda obsessão tudo me arrasta para a tua silhueta tentando imaginar como serás palpável nos meus dedos. Tudo é pura ilusão mas os efeitos dela têm consequências visíveis no meu corpo e na minha vida. Tento concentrar-me mas apenas anseio inquieto pelo passar das horas que parecem cada vez mais lentas e pesarosas.
Não sei como fugir ao fascínio que me despertas com o teu ar de menina mulher. Apesar do ar condicionado do escritório sinto que o suor faz uma travessia do meu corpo quente . Ao meu lado a tua presença idealizada torna o meu dia num abrasador deserto e pede-me suplicante que regresse a casa.
Finalmente a noite chega mas o meu tormento apenas se despiu de uma forma e assume agora outras vestes.
A lua insinua-se devagarinho por entre os cortinados onde te escondes. De repente és uma odalisca perturbante a dançar para mim e embora eu apenas me atreva a sonhar tal, é essa a ideia que me invade .
O vento traz-me o cheiro da maresia que embora fresca contribui para a minha alucinação.
Queria ser um super herói e voar até à tua janela. Pousar as minhas mãos nesse corpo encantado e fazer dele a minha morada. Nada me seria mais caro do que saber o nome da tua pele e aprender contigo a dança do amor.
Mas tu não me olhas e eu fujo assustado da janela que não me alivia o ardor que sinto.
Talvez fosse fácil procurar alguém que me fizesse desprender dessa teia que teceste sem o saberes. Já o tentei mas levei comigo a fome de ti que não pude atenuar noutros corpos.
Portanto prefiro a solidão das noites em que solto os gritos de prazer que te eram destinados , imaginando-te desnuda na minha cama.
Sei que não sou capaz de te abordar e que tu não te mostrarás para mim. Escondes-te e não me devolves o olhar. Fico nesta ansiedade e desespero e torno-me insano a cruzar noites de insónia.
As nossas janelas paralelas quase chegaram a ser tangentes.  Mas não consegui ser um Romeu a falar-te ao coração e portanto elas nunca serão secantes. Tenho de fugir daqui, desta casa, desta janela. Tu jamais serás minha.


© Margarida Piloto Garcia

© Quadro de Bogdan Prystrom








domingo, 21 de setembro de 2014

Confissão





Tapas os olhos para não veres e os ouvidos para não ouvires. Cerras a mente ao murmúrio em zoada. A noite sem dormir, deixou um buraco e um cinzento de palavras. Só precisas de enrolar o corpo num raio de sol e esbanjar as cores do arco íris numa gargalhada.
E é assim que um dia acordas, num desassossego embrulhado como se te escrevessem ao contrário ou te costurassem do avesso.
Achas que é hoje o dia, o tal onde pensas ter a coragem para o derradeiro salto, para transpor a fronteira da última sanidade , para sair das marcas gastas e vincadas à tua volta. Não há abraços de solidão nem felicidades bonitas e baratas. Contas feitas à vida, há que dar um pontapé no caminho enferrujado e dizer que é agora.
E confessas ou tentas confessar.
No teu ombro direito um anjinho diáfano semicerra os olhos e faz beicinho. Tenta convencer-te a dizeres coisas doces, porque afinal és pura e de uma inocência negada à vida. És apenas louca como um artista cativo de um admirável toque de génio, ou um pássaro em delírio a carregar o céu nas asas.
Nada tens para confessar a não ser a vida mal amada do dia a dia , cheia de metáforas (ou serão mentiras?), a atreverem-se a colorir a existência azeda.
Mas no teu ombro esquerdo, um diabinho elegante e melífluo não te deixa em paz. Belisca-te, desce pelo pescoço e aloja-se entre os seios a desafiar-te. Emudeces os lábios no ar morno, espesso da dúvida galopante.
 Afinal, um passo dado na incógnita do medo a arriscar uma caminhada  feita de um querer fecundo, seria como atirares-te do alto do penhasco da vida.
Quem sabe não teria o gosto de uma lágrima pintada e escorrida, nesse corpo que quer mas não lembra!
E entre o pedido urgente e requebrado do diabinho lânguido de voz íntima e rouca e o balbuciar doce do anjinho aflito, abanas e alquebras , o instinto a tremer nas pernas  e umas nuvens de insanidade a corroerem todas as intenções de seres razoável.
Mas se confessas, se te atreves, se te aventuras a rasgar a carne e a mostrar os ossos sem suavidade, corres o risco de partir as asas, de despenteares a alma com o destino ao pescoço.
Porque não é fácil mastigares os pensamentos que te cruzam e cuspi-los assim de uma rajada, numa onda metálica a chiar ferrugens de tanto estarem presos.
Vais falar dos dias e dos instintos selvagens que te crescem nos dedos, das palavras a brilhar saliva, que te apetece ausentar da boca?
Ou vais confessar as noites bravias dos fôlegos sem gaguez, onde não há delicadezas e tudo se perde em verdades ébrias?
Confessa então as certezas que não tens dentro de ti mas que rugem  como feras esfaimadas, diz das palavras obscenas e cruas, placebo do amor não feito. De olhos fechados sussurra a tua condição de mulher e as piruetas que o teu corpo sonha no enlace que veste a pele de um homem.
Abre a Caixa de Pandora e conjuga o verbo confessar em todos os tempos.  Porque afinal, se podes assegurar os pecados (serão?) de um passado e presente, por certo o futuro não será diferente,  ainda que cada vez mais se faça tarde e os silêncios sejam densos e de solitárias travessias.
Escolhe  de uma vez por todas se queres ficar acorrentada a esse anjo certinho e de fragrância obscura ou por fim abraçar o diabo real que nada mais é que a tua natureza de mulher .
Olhas-te ao espelho e tens lábios ceifados pelo rubor de um beijo e uma impronunciável emoção a criar seiva nos reflexos escondidos do teu corpo.
E portanto... confessas,  porque mesmo que temas a realidade, o medo é onde vais para aprender.




© Margarida Piloto Garcia in- " Confissões " - publicado por LUA DE MARFIM EDITORA-2014


© Pintura de Charles Webster Hawthorne














segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Aconteceste-me







Simplesmente aconteceste-me.
Havia já uma inquietude de sonhos no ar ligeiramente morno do teatro. Num último frenesim as pessoas acomodavam-se nas cadeiras, numa mistura exótica de aromas e hálitos.
Sentei-me, ou melhor, deixei que o veludo vermelho me envolvesse o corpo numa carícia quente e entorpecedora. Mergulhei dispersa nos murmúrios que me cercavam, num antecipado gozo pelo espetáculo.
Não sei que ardências desabrochavam naquele dia em mim! Quando penso nisso vêm-me à cabeça feitiços ancestrais, origem de luxúrias inauditas. Corria nas minhas veias um fluxo estranho, uma febre esdrúxula e galopante a deixar-me a pele quase a gritar.
Tu surgiste minutos antes de tudo começar e foi como se te tivesse inventado na hora,   à medida dos meus desejos e da minha fome.
Sentaste-te deixando vago o lugar entre os dois e nesse instante fugaz cruzaste o teu olhar com o meu. O ar à minha volta tornou-se rarefeito e o vestido preto que envergava apertou-me o corpo num amplexo bravio. Trouxe saliva aos lábios numa vã tentativa de os amaciar. Mas eles já tinham ânsias rebeldes e uma aflitiva dependência dos teus.
O espetáculo começou. Os tangos argentinos plenos de chamas de uma Buenos Aires quente e apaixonada, as milongas primitivas e ritmadas, cresciam e lambuzavam a imaginação, incendiando o palco.
Deixei-me levar pela magia dos corpos e da música, o coração a galopar frenético no meio das notas do bandonéon.
Entre dois passos de corte e uma media vuelta, olhámos um para o outro separados pela estranha barreira da cadeira ainda vazia.
Desviei o meu como corça aflita, apercebendo-me cada vez mais do que me provocavas.
Os saltos e os tacões ecoavam no palco e agora era sobre o meu corpo, de uma  nudez de seda branca, que dançavam. Os pés dos bailarinos marcavam nele os tempos e os enlaces, mas eu apenas sentia a tua boca, viva e suculenta, a devorar-me como fera em cio.
A música carregava no ventre, quase a parir, paixões incontroláveis.
No meu lugar, eu tinha a certeza que brilhava num calamitoso apelo espartilhado pelo vestido.
O arco do violino tangia-me, expondo-me em carne viva às emoções e ao prazer que eu sentia que viriam da tua boca pressurosa e faminta, das tuas pestanas longas a pintarem-me em pinceladas diáfanas.
No palco a coreografia atingia um ponto alto, numa pose de machos a seduzirem  fêmeas e a vergá-las à sua vontade num último alento. Nesse momento a minha boca entreabriu-se para deixar fugir o resto de um grito meio amordaçado que se perdeu no aplauso do público.
O intervalo chegou e as luzes acres e brancas banharam o teatro e isolaram-me numa aridez crua.
Fiquei sem saber se me devia levantar e misturar com os outros, se ficar ali escondida naquele baluarte vermelho. O problema era pensar no que tu farias também e no que eu queria exatamente. Mas sentia-me febril, esgotada, húmida e palpitante e foi nessa pressa que me ergui, as pernas trémulas a tocarem-se e a despertarem ainda, aqui e ali, uma faísca ao longo das coxas.
Durante aqueles minutos tentei apaziguar o meu mar interior, a minha epidérmica falta de inocência. Num estranho batismo aspergi água fria nos pulsos, na cara, na gota de suor que descia como réptil no meio dos meus seios. Não me reconhecia no espelho, rosada de um prazer impudico e violentador.
Quando voltei à sala não te vi e respirei fundo acalmando os meus anseios.
O espetáculo recomeçou e a tua cadeira continuou desocupada. Agora a inquietação era flor de cardo, desespero a criar raiz, dúvida feita cadafalso.
Gardel soava ebulindo os corpos vestidos de negro e vermelhos inflamados.
E foi nesse momento que o teu perfume se introduziu em mim, invasivo, pungente, quase promíscuo de tanta sexualidade arrasadora. Sem me aperceber ocuparas o lugar a meu lado e o teu perfil desenhava uma fronteira que eu queria transgredir.
Os meus joelhos nus e desvendados tremeram.
 Agora cada passo do tango, os cortes, as cruzadas, eramos nós que os dançávamos, sincopados, carentes e predatórios.
Baixei os olhos para as tuas mãos, belas e poderosas, mãos de pianista, suaves mas viris. Imaginei-as capazes de tocar em mim todas as sinfonias e sonatas.
Presa às imagens que despudoradamente idealizava, o leve toque do teu braço lançou-me numa espiral sem retorno. Às 120 batidas da dança, respondia o meu corpo numa corrida que as superava.
 Alienada num interno desvario desejava mais do que nunca o poder da tua boca a desvendar-me em estocadas e as aranhas das tuas mãos prendendo-me numa teia,  enquanto escorregavas na seda do meu vestido.
Antes que a pequena morte chegasse e me derrubasse numa síncope inaudita, levantei-me e fugi para a rua  a abraçar o frio e a exorcizar os meus demónios.
Mas eu acontecera-te tal como tu a mim.
Por isso, dez anos passados, ambos celebramos aquilo a que não queremos dar nome, dançando um tango argentino.


© Margarida Piloto Garcia in- " SEDUZ-ME " -publicado por PASTELARIA ESTÚDIOS EDITORA-2014


© Foto de Alfredo Ventura Sousa, concebida a partir do texto.






segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Desabafo




Preciso habituar-me à imperfeição, logo eu, de imperfeições feita
agarradas aos olhos e ao cérebro latejante
Ergo-me inconformada e inquieta, o rio do corpo a correr não sei para que foz
as margens a tropeçarem nos azares e a vida a tentar passar a fronteira da pele
Mas que importa, se crias outro dialecto com que me assombras com a futilidade de um romance!
Às vezes o coração fica míope de tão inocente e desacertado
E depois? Olho para trás e para dentro , a mão nervosa a tocar os olhos
como se as lágrimas fossem cordas de guitarra.
Os anjos puxam-me o cabelo e os pássaros abraçam-me com asas cinzentas
a salvarem-me do que não controlo, olhos magoados a escoarem dores.
Não grito como flor aberta, não deixo escorrer por entre os dedos
o desassossego da sede feroz e da fome a roer as entranhas.
Agarrada ao sonho teimo cegueiras em palavras lúdicas
em cheiros de corpos que a paixão louca não questiona
em sabores engolidos e pele a arder no vazio enclausurado.
Mas emudeço os tacanhos e delirantes sentimentos
porque algures num mundo escangalhado sem velas e sem leme
mais uma mãe encosta o corpo na fronteira da dor
e exausta, desabita a lucidez enquanto abraça o filho morto.


© Margarida Piloto Garcia  in "IDEÁRIOS" publicado por A CHAMA 2019


© Foto de Jonè Reed








domingo, 17 de agosto de 2014

Anúncio de jornal




1º anúncio:
“ Homem jovem e pronto, precisa-se. “

O suspiro arranca-lhe um som agudo do peito. Agita-se. Estremece. Aquela força desabrida que mais parece um urro, sacode-a de uma ponta à outra. Sente um sufoco inusitado, uma espécie de febre galopante, que lhe arde nos poros e na raiz dos cabelos.
Anda em frente ao espelho, medindo-se e calculando a avidez do corpo. A impaciência que lhe grassa no sangue torna-a explosiva, rebenta-lhe chispas nos olhos. Desinquieta-lhe as mãos, cava-lhe anseios no ventre.
Levanta-se, senta-se, volta a erguer-se. Espreita pela janela ruídos de uma festa domingueira e lambe os lábios, no gosto ousado,  que retira das imagens de ancas sacudidas nos corpos que passam.
A certa altura não hesita. Lança-se rua fora num passo corrido, ao encontro do que sabe que a espera.
Não olha a nada quando se atira nos braços dele, no pequeno escritório clean e sem aromas.
Ele tem a força de uma juventude rude mas sábia e vivida. Mordisca-a e beija-a, põe-lhe o corpo aos gritos, aos soluços, possui-a sem demoras, espalmando-lhe os seios na parede que ela arranha, enquanto atrás de si o macho acutilante a devasta em paroxismo.
É daquilo que precisa, daquele vigor primitivo a calcar-lhe aos pés o pensamento, deixando apenas uma fêmea em cio.
Quando tudo acaba, não são necessárias palavras ou gestos inúteis.

2º anúncio
“ Homem maduro e competente, procura-se.”

Precisa de um café.
Sai, de ombros descobertos ao sol ainda morno  e levemente rosado.
Sentada na mesa debaixo da sombra da amendoeira, vê-o aproximar-se.
O encontro marcado é só para deixar as palavras rolarem, mas elas afagam-lhe os braços e os seios como mãos famintas.
Como uma aranha tece a teia e sente-o estremecer sem contudo se tentar libertar.
Foi tão fácil, que ela já só lhe sorri e pousa a mão na perna, firmando os cinco dedos como tentáculos, tentando passar-lhe as impressões digitais através das calças, da pele, do músculo fremente até ao osso.
Rapidamente combinam um local. No caminho banalizam a conversa, enquanto ele lhe diz que gosta das coisas devagar e sem pressão.
Ela ouve-o desatenta, como se tudo o que ele diz não passe de um anúncio célere e papagueado, no meio das canções que uma rádio vai debitando e ela entoa baixinho, a mente em apoteose delirante do que se seguirá.
Sente-se estranha quando entra no quarto, como se o desejo que a revestia tivesse estalado como uma frágil capa de verniz.
Afasta o pensamento quando as mãos do homem a começam a acariciar.
De repente, a única coisa que ela consegue ver, é aquela masculinidade dirigida a ela.
Lembra-se de que ele não quer pressas mas neste momento isso não lhe interessa.
A sua curiosidade vai direita ao que ele, nu, ostenta vigorosamente entre as pernas e que ela acha quase obscenamente notável, digno de um qualquer filme porno onde a história e o diálogo são meros acessórios.
E é isso que ali se passa. Tudo o mais é dispensável e supérfluo, a não ser aquela vontade dela de que ele a devore, a preencha, a faça vergar numa súplica por mais.
Tem receio perante o que viu, mas o corpo diz-lhe que o desejo é tão grande que tudo permite.
Primeiro deixa-o ser rei e senhor mas depois cavalga-o como uma selvagem agarrada às crinas de um cavalo por domar. Usa-o, desfruta-o, deixa-o a arquejar quase violentado mas plenamente saciado.
A tarde cai em roxos entumecidos.

3º anúncio
“Jovem à procura de dominadora, necessita-se.”

O cabelo negro balança-lhe na face incendiada, envolvendo-a num aroma  a pespontar-lhe agulhas no sexo a escaldar.
Guia lentamente no crepúsculo que quase se esvai naquele princípio de noite quente e pecaminosa.
O vulto do jovem cruza-lhe a mente e as palavras que ele costuma proferir são uma espécie de choque quase impossível de suportar.
Tão jovem, tão delgado, um querubim que a endeusa e lhe pede lascivamente que o consuma.
Céus, nunca se sentiu assim tão poderosa, o prazer a entrar-lhe pelas veias como uma droga potente! Ela é a deusa debaixo da qual ele ora, sucumbe e soluça, gritando por mais, enquanto ela lhe transgride o corpo com o objecto que a masculiniza.
 Nunca pensou percorrer tal caminho mas a luxúria poderosa que deles se apossa fá-la vibrar como um diapasão demasiado sensível.
Ele já entrou na idade adulta como uma criança viciada e de um modo burlesco e quase dantesco, é isso que o torna tão apetecível.
Espera por ele perto do jardim, faróis apagados e a respiração ofegante a tingir os vidros de uma supuração lacrimejante.
Ele está quase aí...sabe-o.

4º anúncio
“ Procuram-se sensações de luxúria, venham de onde vierem.”

Já trocaram palavras e textos e há um encantamento dourado no que ele lhe escreve. Revolta-lhe o sentir, esgrime-lhe a alma com estocadas ardentes mas tão sub-reptícias quanto certeiras.
Ela não quer aquilo. Os sentimentos são um estorvo que a impedem de usufruir em pleno da devastação que o prazer carnal lhe provoca.
De momento não tem como escapar aos efeitos daquela voz quente e sensual que a atira para incontáveis êxtases, que a faz cerrar as pernas com força e soltar gemidos quase uivados.
Está um dia fulgurante, quente e grávido do perfume pungente das acácias. O beijo dele é doce de mirtilo, canela e gengibre, quase obsceno de tão escancarado, provocante  e indagador.
Rende-lhe os ombros desnudos na blusa negra e arrendada. Rende-lhe os seios meio ocultos no soutien bordado. Rende-se toda quando ele a dobra e lhe invade, em beijos de língua, o baixo-ventre exposto àquela tempestade.
O vento engole-lhe os ais, quando se atira pela janela aberta a fazer dançar os cortinados brancos.
A porta fecha-se repentinamente, ocultando parcialmente a voz de Antony Hegarty que naquele tom que só ele possui a impede de pensar no seu desejo, na sua fúria de controle, na paixão única de obter prazer a qualquer custo.
Aquele acto deixou de ser puramente sexual. Foi maculada a luxúria crua e aditiva que a movia até agora.
Ele faz amor com ela, pede mas também dá, submete-se numa fragilidade cativante, mas oferta-lhe algo que ela sempre se negou.
De repente sabe-se pequena e exposta, o coração a querer dizer coisas que não são banais, as palavras ácidas e brutais que o sexo lhe dita, substituídas por outras, doces e caramelizadas, inebriada por algo que nada tem a ver com o corpo.
Quando tudo acaba, quer ficar nos seus braços e esse pensamento aterroriza-a e fá-la sufocar no pânico que dela se apodera.
Sai de casa dele a apagar desesperadamente a memória daquele local.
Nunca mais lá volta. O amor não faz parte da equação. Há coisas que não se podem deixar assim, abandonar de repente, sob pena de nos arrancarem um pedaço.
É tão mais fácil um rumo de prazer, sem que o coração peça meças e venha embrulhar a vida.
Tem que esquecer, seguir, matar o vício, uma, duas, muitas vezes.

Amanhã é dia de novo anúncio.


© Margarida Piloto Garcia in- 7 PECADOS MORTAIS-publicado por PASTELARIA ESTÚDIOS EDITORA-2013




sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Anatomia de um beijo




Olhavam-se as bocas em carnívoro apetite
em desassossego de lumes
vagueando o corpo como lobo feroz
Estudavam-se os lábios num percurso de lavas
a pensar geografias suculentas
Aqui e ali um dente alvo e canibal
emitindo chispas na iris predatória
Rasgavam-se as cortinas da vida
e dentro era fogo, era flor em grito
era raiva incerta, corpo exposto e aberto
papoila rubra a rebentar no ventre.
Degladiavam-se as bocas em desespero
a ressacar um vicio nunca experimentado
Corria entre eles o cheiro das acácias
o toque corrompido , um absurdo sem vírgulas
uma violência de bocas acesas a espantar a escuridão
Foi na desordem que as línguas respiraram
ressuscitando o calor e a fome, o princípio e o fim
tudo em revolta numa estrada louca e atropelada
sem razões sugadas nos lábios.
E a terra tremeu no grito dos corpos
E a vida cresceu no céu da boca
E não houve promessas a cumprir
porque nenhumas foram feitas.


© Margarida Piloto Garcia in "EROSÁRIO 2016"-publicado por SILKSKIN EDITORA 2016





quarta-feira, 30 de julho de 2014

O mundo da lua




Há muitos anos, era parte de mim a lua pendurada no teu corpo. Tu ias e vinhas na noite, num tropel que nem os cavalos do sonho conseguiam acompanhar. Nada era realidade a vestir-me o corpo e apenas o medo penteava os meus cabelos.
Tu seguias imune aos meus apelos, orgulhoso e falsamente convencido de que a estrada do luar era só tua. Agarrada a ténues esperanças, abri-te os braços vezes sem conta, na vã tentativa de que eles fossem abrigo e casulo, fossem caminho e cama de amores lunares. Mas a teia dos segredos a palpitar nos olhos, sempre nos enredou e os lobos a morderem a pele numa luciferina sedução, foram sempre vencedores.
Hoje os dedos doem-me quando toco o luar e me tento demorar na pele do teu corpo.
É em quarto minguante que a lua te recorta, suspirando maresias insensatas e insuspeitas. Nada consigo ouvir, os sons enclausurados num outro universo, nada consigo ver, cega pelas mentiras embrulhadas em papel colorido. E as palavras que poderia dizer ou gritar, calo-as porque perdi as asas de gaivota ao cruzar o último céu.
Com o teu lado escuro tentas agarrar-me num abraço luarento, os olhos postos, não em mim, mas na feiticeira iluminada numa gritante noite azul.
Mas algo se recolhe em segredo, refugiando-se dos gestos gastos e mínimos. Não tenho mais desejos grávidos de ti porque os isentaste de mim.
Agora, só desejo guardar  aquele lugar mágico , inviolado e secreto que nunca corrompeste.
Toma para ti o que com esqueléticas razões julgaste ser teu. Deixa-me apenas o mundo da lua.




© Margarida Piloto Garcia in- O MUNDO DA LUA-publicado por EDITORA LUA DE MARFIM-2014

© Arte de Dimitar Voinov Jr