quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Ontem






Ontem escrevi sobre ti
sobre os tempos em que me delineavas a anca
com dedos firmes e aguerridos
e os deslizavas pela minha cintura
numa espécie de morte anunciada.
Tinhas sempre um medo de me perder
agarrado a ti, como se fosses um eterno náufrago.
Eu escondia entre as pernas a impaciência
e rugia palavras proibidas em pressas desvairadas.
Ontem senti na boca o teu sabor a sal
como se fosse a última onda
de uma maré imperfeita.


© Margarida Piloto Garcia in-ANTOLOGIA DE POESIA CONTEMPORÂNEA VOL VI "ENTRE O SONO E O SONHO"-publicado por CHIADO EDITORA-2015


© Tela de Suhair Sibai


  

domingo, 17 de novembro de 2013

Declaração




Declaro que te espero
nos dias em que a chuva me mitiga o fogo
nas noites em que o corpo em rebuliço
se entretém em danças e litanias solitárias.
Não venhas se me temes
ou se a tua fornalha não anseia pelo meu mar interno.
Tenho em mim a telúrica força de uma valquíria
e ouso defrontar o teu guerreiro altivo de canto rouco
e a tua espada acesa a queimar-me desde a boca
até ao vórtice onde o desejo renasce
num devorar repetitivo e lancinante.
Declaro que te espero
e sempre te esperei.
Esta música da pele tem um travo doce de devaneio juvenil
e a carência vivida das inclementes horas.
Declaro que te quero
assim, neste final que chega manso e louco.
Por isso
antes que os deuses te roubem ao insano desejo
vem.


© Margarida Piloto Garcia-in A ESSÊNCIA DOS SENTIDOS I-publicado por EDIÇÕES PAULA OZ-2013


terça-feira, 12 de novembro de 2013

A estupidez humana





Estupidez, aquela, a humana que Einstein disse que era infinita. Nada tem a ver com literacia ou capacidade  intelectual. Para além de infinita é pegajosa e traz um arrepio gelado à minha pele.
Enfrento a estupidez  de alma lavada, nua de preconceitos e juízos. E ali fico, à espera que ela suma no chão, diluindo-se numa poça líquida. Mas a estupidez ergue-se e como num filme de ficção assume forma humana e cresce para mim.
Vou buscar argumentos implacáveis, fatais e irrepreensíveis. Esgrimo palavra contra palavra, num ballet rítmico cheio de pliés, cabriolés, jetés. A meio da dança a estupidez abranda e eu deixo a irritação relaxar.
Mas nessa altura sou de novo atacada com novo vómito de verborreia inusitada, um bafo quente e corrosivo que me atinge em cheio.
A estupidez nunca dá tréguas, por isso é infinita. Não compreende, não aceita, não vê. É um Ciclope cego, um bloco de granito contra o qual embatemos sem o conseguir transpor.
Preparo-me para nova luta. Avanço com a guarda alta e desfiro uns jabs, cross e uppercuts. Ela recua mas não tomba. Um suor escorregadio cruza-me o rosto e a boca fica nua e seca como um saco árido e vazio sem as palavras despejadas.
Tento não desistir da luta contra a estupidez humana. Às vezes transformo-me num ninja indecifrável e rondo-a sorrateiramente à procura de um qualquer modo de a derrotar.
Mas que resultado é possível contra este adversário temível?
No fim, ensaio um sorriso ensolarado a entreabrir-me os lábios. Foco o olhar na distância a calcular o voo e a mente parte vestida de silêncio.
Na minha frente a estupidez incha e dá o braço à irritação.


© Margarida Piloto Garcia






quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Poema pouco sereno






Não há serenidade  no meu olhar.
Intrépidas são as buscas e eternos os porquês.
Não esperes do meu corpo
a mansidão das searas flutuantes
porque ele tem pressas e tumultuosas vagas.
Não busques em mim
a paz contemplativa do fim dos tempos.
Tenho rubras esperas a tingirem-me os lábios
e abraços esfomeados agarrados a mim.
Talvez um dia possas dizer
que o meu corpo é uma casa
da qual sabes os recantos, as esquinas e os lugares sagrados
ou o ultimo reduto onde comes e dormes
enquanto as estações dão a volta ao mundo.
Mas não teças dialéticas sobre o que quero e sou
e não enchas de balas
o que apesar das palavras noturnas e dos desejos camuflados
ainda não é teu.


© Margarida Piloto Garcia