quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Na noite




Nas noites que trazem o cheiro do alecrim
espreguiço-me no lençol de linho da cama alva.
Ainda há pouco me lançavas no ouvido
papagaios coloridos de papel
e eu soltava-os ao ritmo da imaginação
que é de tudo raíz, fruto e flor.
A felicidade caminha em mim
como se fosse um animal sedento
e eu espreguiço-me de novo
deixando pequenas nesgas de luar
marcarem o meu corpo.
E a tua boca é sagrada
porque sabe comer as luas e torná-las deuses.
E a tua boca é uma fera
que bebe o meu regato, come a minha flor nascida
e se afunda exausta nas grutas palpitantes.
O meu suspiro entra e sai da tua boca
e tudo sabe a sal, a mosto, a chuva.
Tudo sabe a desassossego, a música habitada,
a felicidade a consumir antes que acabe o prazo.
Acordo do meu sonho e tudo sabe a nós.



© Margarida Piloto Garcia in AUDÁCIA DOS SENTIDOS-publicado por EDITORA UNIVERSUS-2013


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Morte anunciada






 Morrias
em manhãs odoríferas grávidas de imaginação.
Morrias
nas tardes espúrias e pálidas que a nada chegam
Morrias
singrando as noites estultícias e afundando a vida.
Na tua boca as palavras expiraram
e os trechos cursivos estiolaram sem as tuas mãos..
De olhos voltados para dentro
estrangulaste sonhos e desejos.
Agora corro à procura do rio que sem pressas nem destino
me leva a outras margens
e sondo-me na esperança de que o sentimento
me acenda
me varra
me sugue como um vampiro.
Enquanto isto, sem mesmo te dares conta
tu morrias-me

© Margarida Piloto Garcia


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A pior coisa na vida





Não sei bem como medir o olhar que me deitaste, quando passaste por mim num matraquear de saltos na calçada. Nos poucos segundos em que te embaraçaste na multidão, ficaste presa em mim, como um pássaro aflito a bater asas. Foi um breve espaço no tempo, uma cena de cinema em câmara lenta.
Eu olhei-te como se pudesse ter levitado da enxerga às riscas, pejada das mantas da caridade pública, quase a tentar encarnar-te e seguir contigo. Reconheci-me no passo bailado a cantar esperanças, na roupa a cheirar a flores de laranjeira, no cabelo a esconder um olhar aceso.
Quis seguir contigo e agarrar-me aos poemas que os teus lábios deixavam adivinhar, enquanto te diluías nas sombras de tantos vultos. Tu pisaste as pedras rumo ao desconhecido e eu reconheci o percurso anteriormente feito pelo meu corpo.
Escondo-me nos cartões duma publicidade que já não me faz falta, olhando-te através das letras dos jornais, que me falam de um mundo que já não é o meu.
Acomodo-me rente à muralha a pensar como serás, o teu corpo esticado num sofá a tecer sonhos. Um sofá, algo extraordinário, uma peça onde se pode ler, dormir, amar e sonhar...sempre. Antes, eu nunca teria percebido como um objeto de 4 letras, poderia ser tão importante.
Tenho este canto onde ainda sonho quando consigo fugir à aspereza da pedra e à frialdade duma noite invernosa. Afinal, o sonho tem essa impecável imaterialidade de tudo o que nunca será.
Mas tu passas agarrada aos teus sonhos de sofá, do qual não sei a cor. Passas e lanças-me esse olhar que não é nem de nojo, nem de pena. É antes um arrepio que te vem da pele e te sobe aos olhos, deixando-os a refletir sombras e desvaires.
Da tua mala, quando roçaste a pedra, saiu uma lufada quente e reluzente, um aroma doce a sacudir-me a memória e a despertar uma confusão aguda no estômago faminto.
Mas apaziguo-a rápido, habituada que estou a cercear qualquer devaneio que o corpo solicite.
Não costumo reparar nos vultos que me enchem os dias de sons e odores. Mas hoje, tu passaste e foi como se fosses eu, num outro tempo, numa outra vida.
Apeteceu-me levantar deste fim de mim, correr atrás de ti e gritar-te:

- Cuidado, a pior coisa na tua vida será matares os sonhos.



© Margarida Piloto Garcia