Não sei bem como medir o olhar que me deitaste,
quando passaste por mim num matraquear de saltos na calçada. Nos poucos
segundos em que te embaraçaste na multidão, ficaste presa em mim, como um
pássaro aflito a bater asas. Foi um breve espaço no tempo, uma cena de cinema
em câmara lenta.
Eu olhei-te como se pudesse ter levitado da enxerga
às riscas, pejada das mantas da caridade pública, quase a tentar encarnar-te e
seguir contigo. Reconheci-me no passo bailado a cantar esperanças, na roupa a
cheirar a flores de laranjeira, no cabelo a esconder um olhar aceso.
Quis seguir contigo e agarrar-me aos poemas que os
teus lábios deixavam adivinhar, enquanto te diluías nas sombras de tantos
vultos. Tu pisaste as pedras rumo ao desconhecido e eu reconheci o percurso
anteriormente feito pelo meu corpo.
Escondo-me nos cartões duma publicidade que já não
me faz falta, olhando-te através das letras dos jornais, que me falam de um
mundo que já não é o meu.
Acomodo-me rente à muralha a pensar como serás, o
teu corpo esticado num sofá a tecer sonhos. Um sofá, algo extraordinário, uma
peça onde se pode ler, dormir, amar e sonhar...sempre. Antes, eu nunca teria
percebido como um objeto de 4 letras, poderia ser tão importante.
Tenho este canto onde ainda sonho quando consigo
fugir à aspereza da pedra e à frialdade duma noite invernosa. Afinal, o sonho
tem essa impecável imaterialidade de tudo o que nunca será.
Mas tu passas agarrada aos teus sonhos de sofá, do
qual não sei a cor. Passas e lanças-me esse olhar que não é nem de nojo, nem de
pena. É antes um arrepio que te vem da pele e te sobe aos olhos, deixando-os a
refletir sombras e desvaires.
Da tua mala, quando roçaste a pedra, saiu uma lufada
quente e reluzente, um aroma doce a sacudir-me a memória e a despertar uma
confusão aguda no estômago faminto.
Mas apaziguo-a rápido, habituada que estou a cercear
qualquer devaneio que o corpo solicite.
Não costumo reparar nos vultos que me enchem os dias
de sons e odores. Mas hoje, tu passaste e foi como se fosses eu, num outro tempo,
numa outra vida.
Apeteceu-me levantar deste fim de mim, correr atrás
de ti e gritar-te:
- Cuidado, a pior coisa na tua vida será matares os
sonhos.
© Margarida Piloto Garcia