Virou a esquina e o
perfume atingiu-a como um soco violento. Parou aturdida, a mão comprimindo o
estômago, a respiração ofegante, o coração tornado corcel em fuga insana. O
aroma era inebriante, quase sufocante de tão pungente e intenso.
Respirou fundo, muito
fundo, as narinas tremendo, na vã
tentativa de que a fragância se diluísse nas veias sem a entorpecer demasiado.
Andou um pouco,
cambaleante com a intensidade da resposta que o corpo lhe transmitia.
A rua era inclinada com
meia dúzia de bancos a culminar a subida. Sentou-se e voltou a aspirar o ar
limpo da madrugada azul. Uma brisa odorífera, chicoteou-a levemente numa
carícia perversa e proibida e uma flor caiu da árvore e escorregou-lhe levemente
por um fio de cabelo, fez um percurso em espiral e aterrou-lhe nos lábios.
Voltou a sentir o
formigueiro intenso nas narinas e a resposta febril que o aroma desencadeava em
si.
As flores nas árvores
executavam um mágico e sensual bailado, agitando-se, lançando-se em voo
feérico, dispersando-se, tombando e voltando a remoínhar rua abaixo.
Estremeceu inquieta,
assustada pelas sensações transmitidas pelas flores da laranjeira. Encostou-se
no banco, a saborear em pequenos travos os raios de sol perfumados.
Tantas lembranças a
marcarem-lhe o corpo como cicatrizes mal curadas!
Tinha dias em que
jogava um jogo: o do esquecimento. Nesses dias, o jogo era misericordioso com
ela. Marcava-lhe a mente com um torpor sólido e palpável, uma espécie de
cadeado que impedia as memórias de se escapulirem do local onde as guardava.
Era assim que se sentia
quando nessa manhã caminhava aérea e quase intangível, antes de ter virado a
esquina.
Depois ...tudo se
transfigurara. O perfume intenso das flores tinha sido a chave que criara o
dilúvio, a tempestade de emoções. De repente os muros ruíram e as lembranças
jorraram em tropel, desnudando-a, violentando-a, derrubando-a sem qualquer
pudor.
Fora num dia assim que
o conhecera. Corria uma primavera quente e insidiosa, com a natureza a brotar
por todo o lado num parto incessante e quase lúbrico. Sentia-se especial, com o
amor próprio a cantar de prazer, à custa de um corpo flexível e de um novo
penteado. Os recentes caracóis pareciam espirais de um desejo pagão a
volutearem ao longo da face. Tinha uma leveza exaltada, nos movimentos quase
lascivos de tango dançado e um apetite voraz de um não sei quê a queimar-lhe a
pele.
Fora a casa de uma
amiga que regressara de uma longa estadia no estrangeiro, com o intuito de
passar uma boa tarde a trocar experiências. Ela apresentara-lhe o irmão mais
novo, um menino maroto como carinhosamente o apelidou.
Ainda hoje se pergunta
o que aconteceu. Seria a magia do dia primaveril, uma febre grassando-lhe o sangue
ou o princípio de uma demência desconhecida?
Ambos se olharam e
mesmerizaram.
A partir dessa altura
tudo o que a rodeava se tornou difuso, distorcido. Tinham brincado com as palavras
enquanto os olhos diziam outras. A tensão entre eles era tão explícita que
deformava o espaço e o tempo.
A vida fora
reinventada. Pareciam falar uma língua primitiva feita com os corpos em vibrações e cicios. Ela
ardia, o corpo em chama a palpitar num louco crescendo, os mamilos a
sobressaírem triunfantes na blusa branca. Tinham sorrisos comedidos mas a
sofreguidão de um beijo já corria neles. As cores em redor tornaram-se
psicadélicas num alucinado e gritante tumulto. Magentas cinabrinos, vermelhos
lacre, brancos cintinlantes, explodiam numa atávica orgia de sentidos.
Lembrava-se que tentara
manter-se racional mas falhara , corpo e mente enlouquecidos num prazer tão
antigo como o tempo. Duas horas de conversa tinham parecido cinco minutos
mágicos e intemperados de lava ardente.
Pensando bem, não se
lembrava de como a certa altura tinham ficado momentaneamente sós na pequena
sala, que de súbito não era mais do que um casulo quente e magnético.
Descontroladamente e
sem pensar tinham-se aproximado. O beijo fez os corpos embaterem e
fundiram-nos. Foi sôfrego, voraz, canibalesco. O abraço selvagem que os uniu,
tornou-os em cometas, supernovas, buracos negros.
A partir dessa altura
nenhum dos dois voltou a ser como dantes.
Nos primeiros dias que
passaram sem se ver, ela adoeceu de inquietação, o corpo a ressacar a falta do
beijo. Não entendia aquele desejo enorme, aquela loucura quase demoníaca que a
possuíra. Sentia-se uma deusa por ele também a desejar, a ela uma mulher de 52
anos já vividos, ele ainda um jovem com os 35 anos bem notórios no corpo
musculado e naquela fragante e viciante
masculinidade com que a cingira.
Passaram horas ao
telefone, alheios a tudo o mais, na inútil tentativa de compreenderem o que
lhes acontecera. Ao mesmo tempo iam descobrindo quem eram e criando entre eles
elos que como gavinhas cada vez mais os enlaçavam.
Ao princípio achara que
era só desejo, uma incontrolável atração que os unira. Mas a primeira vez que
fizeram amor, ele tremera como uma criança e ela chorara de uma só vez os
sonhos perdidos e as mágoas rebeldes.
No quarto onde o sol
lhes pintava os corpos com fórmulas de alquimista, compreenderam que o desejo
se tornara paixão. Da janela viam o pequeno pátio onde as laranjeiras se
enchiam de frutos doces prenhes de sumo, explodindo depois numa florescência
impetuosa.
Impossível não
tactearem cada milímetro do corpo e se devorarem com beijos sempre que estavam
perto. A suas bocas conheciam todos os recantos e sem tabus ou preconceitos
desvendavam todos os segredos. No fim gritavam sempre êxtases, murmurando
depois versos no fundo da boca. A carência de um pelo outro era quase uma prece
aflita, um cântico de alarme.
Ambos se sentiam
virgens de tudo, inventando e reinventando a palavra amor. Porque era de amor
que se tratava.
Sabia que o tinham
percebido no decorrer dos meses e na morte anunciada em cada ausência.
Tantas vezes ela ia ao
seu encontro e ao entrar na casa saltava-lhe para o colo como uma menina
ladina. Ele ria sempre subjugando-a com beijos e chamando-lhe miúda louca, a
sua adolescente.
Mas a pouco e pouco a
preocupação de um pelo outro aumentava, os planos começavam a perturbá-la e a
dor de não se terem sempre, iniciou uma rota feroz.
Ela começou a
indagar-se, perturbada pelo que fazia. Sempre que passeavam enlaçados, sentia
entre eles silêncios rezados que amargavam o pôr do sol.
Sempre fora uma mulher
sem pecados a não ser os da imaginação. Há muito que o seu casamento ruíra e o
marido seguira um outro rumo sem olhar para trás. Não havia filhos para lhe
lembrar o passado e ela nem sequer pensara em encontrar alguém. E ali estava
ele, com uma noiva à espera pronta a dar-lhe o que tanto ambicionava: um filho.
Sentia-se culpada, com
sentimentos a baralhar tudo invadindo-lhe algo que fantasiosamente construíra.
Ela podia bastar-lhe mas nunca lhe satisfaria o sonho.
Num dia de horizontes
rubros tinha-o esperado, ansiosa como sempre. Música tocava, canções que lhes
punham lágrimas nos olhos enquanto os corpos suados escreviam antigas runas e
os rios entre as suas pernas desaguavam sempre num estremecer incontido. Ela
juncara a cama de flores que agora lhes perfumavam os corpos. Inúmeras velas
criavam caminhos de luz e sombra, contando
a história antiga do amor entre um homem
e uma mulher.
Foram frementes as
carícias desenhadas com a mãos. Intensas, poderosas, loucas, a anunciar o
apocalipse. Mais uma vez mergulhara nos olhos dele e tentara esgueirar-se pelas
pupilas negras e magnéticas. Tinha querido arder nelas enquanto se desfazia no
corpo dele. Cheirou-o como fera, embrenhou-se naquele cabelo rebelde e cingiu-o
arrebatadamente. E amaram-se vezes sem fim, no eco dos tempos primitivos, como
um pássaro aflito num louco bater de asas.
O corpo dela tinha sido
instrumento onde ele com mestria tocara acordes rasgados e profundos num
inimaginável adagio. E no fim, quando gritaram em paroxismo os nomes um do
outro, ela libertara-o.
Durante muito tempo o
corpo dele ficou preso no dela numa despedida muda. Não deixara que as súplicas
a demovessem. Sentira-se oca mas amava-o demasiado para lhe negar o sonho.
Naquele dia ele partiu
primeiro e levou-a colada à sua pele. A mulher que entrara ficou embrulhada na
colcha da cama e no perfume das flores que desenhavam a marca dos corpos.
Quando por fim saíra, levava os braços enlaçados no corpo à procura do dele.
Por dentro a escuridão avançava, a corroê-la numa agonia que ela queria arredar
correndo como louca e desfazendo a decisão. De olhos postos na porta fechada,
achava que a dor iria acalmar com o tempo, com os anos, com outras primaveras a
florir.
Mas a dor nunca tinha
passado ou abrandado, num ritual que começava ao acordar e só a largava altas
horas quando o cansaço da insónia a vergava.
É certo que erguera
barreiras e se habituara a ficar entorpecida, perdida em pensamentos.
Mas bastara o aroma
súbito das laranjeiras em flor para que a história daquele intenso amor e dos
laços que cortara cerce e sem hipótese de retorno a devorassem como parasitas a
roerem-lhe os ossos.
Passados doze anos,
sentada no banco banhado pelo odor fulgurante, sabe que a dor lhe traz algo de
bom. Com ela reviveu cada minuto do amor perdido e parece-lhe sentir de novo as
mãos dele, fazendo-a e defazendo-a como barro moldável.
Nada mudou nela apesar
dos cabelos brancos. Adolescente aos 52 e adolescente depois dos 70. Uma alma juvenil
e ébria de paixão a espreitar nos seus olhos.
Devagarinho, enquanto o
entardecer arrefece o perfume das flores, retira uma folha meio amarelecida do
bolso do casaco. Desdobra-a com o cuidado de quem toca uma renda preciosa, as
mãos tremendo como uma virgem em dia de descobertas.
Os lábios que sabem bem
o gosto de um primeiro beijo nunca esquecido, recitam o último poema que ele
lhe deixou.
“
Quando fechar os olhos
tu
virás amor e eu farei
do
teu corpo a minha casa.
Nas
tardes melancólicas
Beijarei
os teus seios de deusa
e
morrerei em ti, onde sempre me esperas.
As
muitas luas que passarem
sobre
as nossas bocas
soletrarão
o teu nome
e
o beijo ardente perdurará
na
memória das flores de laranjeira.”
© Margarida Piloto Garcia-in BEIJOS DE BICOS-publicado por PASTELARIA ESTÚDIOS EDITORA-2013