Talvez eu goste dos teus silêncios
porque não trazem laços.
Sentados junto ao rio que corre
esquecemos palavras.
Apenas o teu olhar escreve alfabetos
tão antigos como o homem.
Tenho perguntas para fazer
mas navegam num barco de papel
feito das últimas letras que escrevi.
Deixo o meu ombro desnudar-se
e secar-te os discursos.
Agora, já só tens um desejo
gritado no silêncio.
Não levamos connosco âncoras
de passado ou futuro.
Só temos o momento a tremer nas pestanas
e a escorregar devagar pelas margens do corpo.
E se eu quiser
pronunciar palavras proibidas
por favor não me deixes fazê-lo
e sela com a tua a minha boca.
Há muitos anos a vida cabia
toda numa mala de viagem. Não daquelas que agora se usam. Apenas uma que levava
na mão com toda a energia da sua juventude. Ana lembra-se que nela cabiam
poucas coisas, a maior parte dos seus bens materiais, mas a bagagem dos sonhos
era enorme.
Agora alonga o olhar num rio
juncado de gaivotas. Traçam-lhe percursos, todos divagantes. Em cada voo um
grito, em cada mergulho um sonho afogado. E o rio enche e vaza em perenes
partos sempre anunciados. Ana passeia por entre o verde vibrante que a nova
estação fez desabrochar. Busca flores, com a alma aflita de quem minera ouro,
num eterno cansaço de novas descobertas. Agarra-se à terra buscando raízes que
a prendam à vida e sonha, sonha sempre. Nos campos ou junto ao mar, sente-se um
espírito livre. Enverga palavras borboleteantes, salpicos de ondas ou pérolas
de orvalho matinal. Parte em todos os navios que despontam no horizonte ou
enche-se do aroma fervilhante da terra, qual insecto laborioso.
Ana afunda o olhar na distância
e sorri no prazer antecipado do reencontro. Ao longe Luísa caminha na sua
direcção. Traz um passo masculino, quase um contra-natura do seu pequeno mas
viçoso seio, ligeiramente descoberto no decote. Luísa é toda alvoroço, palavras
atropeladas distribuídas por uns lábios finos que não denotam a paixão que a
move. Ana abraça e beija a amiga. De imediato ela lhe conta os dois últimos
meses. As doenças dos filhos, as crises conjugais, os últimos falhanços.
Fala-lhe dos quês e dos porquês, das raivas pendentes, das noites adiadas, dos
solavancos do corpo miúdo, das ânsias de fugas desmedidas, das loucuras ácidas
e picantes. Ana ouve-a e no fundo, tenta resgatar os navios que deixou
naufragar nos rios que atravessou com a mala de viagem. Nas palavras da amiga,
descobre os gorjeios do pássaro aflito que a consome. Já nem escuta, os olhos a
dançarem desejos e os lábios gotejando
paixões arrítmicas. Ambas se debatem,
presas numa gaiola onde estiolam os sonhos de uma juventude.
Tornaram-se amigas na descoberta
de ritmos dançados. Luísa mais saltitante, Ana mais apaixonada. Habituaram-se
pouco a pouco a debitar segredos, a partilhar mágoas. De vez em quando, fogem
ao quotidiano e atiram-se como setas a matar a inércia e a letargia. Descobrem
sempre um recanto onde pairam como fadas. Partilham um copo e desfazem os nós
dos romances. Numa certa loucura, dançam com magia, trauteando versos que lhes
expurgam as maldições.
Depois que a amiga parte, de
volta ao trilho que traçou, Ana pensa que também precisa regressar, não à vida
sonhada, mas àquela que foi fabricando em tantos anos de vida. Ajeita o vestido
preto que lhe faz destacar o cabelo louro, quase branco. Sente-se bem nessa cor
sombria que há anos se sentiu compelida a escolher. É quase um luto pelo corpo mal
amado. Por baixo, a pele explode em vermelhos luxuriantes, em laranjas
flamejantes que só pensam em mitigar a sede em encontros azuis. Sob o vestido
um arco-íris, uma palpitação, uma boca mordida. Por fora, sombras e placidez,
só traídas por uma curva do corpo, pela sensualidade do olhar, pelo modo como
enrola o cabelo nos dedos suaves mas febris.
A tarde cai e um pôr-do-sol
desenha o horizonte como uma tela de Van Gogh. Pensa numa música de Bethânia a
gravar-lhe palavras esdrúxulas na alma magoada. Não quer pensar na casa sem
flores nas janelas, na paisagem quase alienígena dos prédios que a cercam e lhe
serram as pernas com que dança e as mãos com que acaricia. O encontro com a
amiga já se esfumou, deixando-lhe a boca seca e um frio a lamber-lhe as margens
do corpo.
Já não tem a mala onde cabiam
os sonhos e os poucos pertences. Agora seriam precisos muitos caixotes para
empacotar os valores, mas também os desperdícios de toda uma vida. A tralha
substituiu toda a esperança e delapidou-a.