sexta-feira, 26 de abril de 2013

Silêncios








Talvez eu goste dos teus silêncios
porque não trazem laços.
Sentados  junto ao rio que corre
esquecemos palavras.
Apenas o teu olhar escreve alfabetos
tão antigos como o homem.
Tenho perguntas para fazer
mas navegam num barco de papel
feito das últimas letras  que escrevi.
Deixo o meu ombro desnudar-se
e secar-te os discursos.
Agora, já só tens um desejo
gritado no silêncio.
Não levamos connosco âncoras
de passado ou futuro.
Só temos o momento a tremer nas pestanas
e a escorregar devagar pelas margens do corpo.
E se eu quiser
pronunciar palavras proibidas
por favor não me deixes fazê-lo
e sela com a tua a minha boca.


© Margarida Piloto Garcia in-POESIA SEM GAVETAS II-publicado por PASTELARIA ESTUDIOS EDITORA-2013




quarta-feira, 17 de abril de 2013

Sem palavras






Pelas pontas dos dedos
as palavras não escorrem.
Recusam-se a caminhar nuas
a despir-se para mim.
Os meus olhos não as transbordam
teimam em calá-las num brilho aquoso
a esconder constelações.

Num silêncio que me come por dentro
caminho devagar na sombra que deixaste.
As palavras não morreram
prendem-me com os nós que não soubemos dar.

E é neste duro enleio
que te sinto, mas te apago,
te devoro e minto.
Eu guardo a pressa de um amor aflito
tu, jazendo a meus pés já nada sendo.

A minha saia dançando
a minha roupa em voo
no rasgo alucinado da asa da gaivota.
Meu corpo amanhecido
rubro ventre
seiva que o teu navio implorante guarda.

Mas de encontro às minhas coxas de cetim
há muito naufragaste
enterrando o sentir neste meu mar profundo.
E as palavras que te impediriam de partir
eu não as soube então
nem nunca as saberei.


© Margarida Piloto Garcia-in PALAVRAS DE CRISTAL-publicado por MODOCROMIA-2013

Web -art de Yolanda Botelho



sábado, 13 de abril de 2013

Mala de viagem






Há muitos anos a vida cabia toda numa mala de viagem. Não daquelas que agora se usam. Apenas uma que levava na mão com toda a energia da sua juventude. Ana lembra-se que nela cabiam poucas coisas, a maior parte dos seus bens materiais, mas a bagagem dos sonhos era enorme.
Agora alonga o olhar num rio juncado de gaivotas. Traçam-lhe percursos, todos divagantes. Em cada voo um grito, em cada mergulho um sonho afogado. E o rio enche e vaza em perenes partos sempre anunciados. Ana passeia por entre o verde vibrante que a nova estação fez desabrochar. Busca flores, com a alma aflita de quem minera ouro, num eterno cansaço de novas descobertas. Agarra-se à terra buscando raízes que a prendam à vida e sonha, sonha sempre. Nos campos ou junto ao mar, sente-se um espírito livre. Enverga palavras borboleteantes, salpicos de ondas ou pérolas de orvalho matinal. Parte em todos os navios que despontam no horizonte ou enche-se do aroma fervilhante da terra, qual insecto laborioso.
Ana afunda o olhar na distância e sorri no prazer antecipado do reencontro. Ao longe Luísa caminha na sua direcção. Traz um passo masculino, quase um contra-natura do seu pequeno mas viçoso seio, ligeiramente descoberto no decote. Luísa é toda alvoroço, palavras atropeladas distribuídas por uns lábios finos que não denotam a paixão que a move. Ana abraça e beija a amiga. De imediato ela lhe conta os dois últimos meses. As doenças dos filhos, as crises conjugais, os últimos falhanços. Fala-lhe dos quês e dos porquês, das raivas pendentes, das noites adiadas, dos solavancos do corpo miúdo, das ânsias de fugas desmedidas, das loucuras ácidas e picantes. Ana ouve-a e no fundo, tenta resgatar os navios que deixou naufragar nos rios que atravessou com a mala de viagem. Nas palavras da amiga, descobre os gorjeios do pássaro aflito que a consome. Já nem escuta, os olhos a dançarem desejos e os lábios gotejando  paixões arrítmicas. Ambas se debatem,  presas numa gaiola onde estiolam os sonhos de uma juventude.
Tornaram-se amigas na descoberta de ritmos dançados. Luísa mais saltitante, Ana mais apaixonada. Habituaram-se pouco a pouco a debitar segredos, a partilhar mágoas. De vez em quando, fogem ao quotidiano e atiram-se como setas a matar a inércia e a letargia. Descobrem sempre um recanto onde pairam como fadas. Partilham um copo e desfazem os nós dos romances. Numa certa loucura, dançam com magia, trauteando versos que lhes expurgam as maldições.
Depois que a amiga parte, de volta ao trilho que traçou, Ana pensa que também precisa regressar, não à vida sonhada, mas àquela que foi fabricando em tantos anos de vida. Ajeita o vestido preto que lhe faz destacar o cabelo louro, quase branco. Sente-se bem nessa cor sombria que há anos se sentiu compelida a escolher. É quase um luto pelo corpo mal amado. Por baixo, a pele explode em vermelhos luxuriantes, em laranjas flamejantes que só pensam em mitigar a sede em encontros azuis. Sob o vestido um arco-íris, uma palpitação, uma boca mordida. Por fora, sombras e placidez, só traídas por uma curva do corpo, pela sensualidade do olhar, pelo modo como enrola o cabelo nos dedos suaves mas febris.
A tarde cai e um pôr-do-sol desenha o horizonte como uma tela de Van Gogh. Pensa numa música de Bethânia a gravar-lhe palavras esdrúxulas na alma magoada. Não quer pensar na casa sem flores nas janelas, na paisagem quase alienígena dos prédios que a cercam e lhe serram as pernas com que dança e as mãos com que acaricia. O encontro com a amiga já se esfumou, deixando-lhe a boca seca e um frio a lamber-lhe as margens do corpo.
Já não tem a mala onde cabiam os sonhos e os poucos pertences. Agora seriam precisos muitos caixotes para empacotar os valores, mas também os desperdícios de toda uma vida. A tralha substituiu toda a esperança e delapidou-a.
Pensa que caminha para um fim e a única coisa que desejava era um caminho de luz por onde seguir e uma mala de viagem carregada de sonhos


© Margarida Piloto Garcia in- "CORDA BAMBA"- publicado por PASTELARIA ESTUDIOS EDITORA-2012





quarta-feira, 10 de abril de 2013

Hoje



Quero que o hoje seja amanhã
ou outro qualquer dia.
Nunca um hoje onde guardo aflita
a alma amarrotada e dobrada
numa caixinha de cantos esquinados.
Uso a mente, dou corda ao coração
tento poli-la e arredondar-lhe
as arestas vivas e quase cítricas
como um limão azedo.
Hoje a asa da andorinha
não cruzou este horizonte
nem me falou de risos.
A chuva pintou de cinzento
estas mãos com que escrevo
desejos de outros tempos.
Talvez venha um amanhã
ou outro qualquer dia que não seja este.
Talvez.
Eu apenas estremeço as pálpebras
fecho a caixa dos sonhos à espera
e encerro a página do dia que não foi.

© Margarida Piloto Garcia in-NÓS POETAS EDITAMOS- VOL II-2013