Estupidez,
aquela, a humana que Einstein disse que era infinita. Nada tem a ver com
literacia ou capacidade intelectual.
Para além de infinita é pegajosa e traz um arrepio gelado à minha pele.
Enfrento
a estupidez de alma lavada, nua de
preconceitos e juízos. E ali fico, à espera que ela suma no chão, diluindo-se
numa poça líquida. Mas a estupidez ergue-se e como num filme de ficção assume
forma humana e cresce para mim.
Vou
buscar argumentos implacáveis, fatais e irrepreensíveis. Esgrimo palavra contra
palavra, num ballet rítmico cheio de pliés, cabriolés, jetés. A meio da dança a
estupidez abranda e eu deixo a irritação relaxar.
Mas
nessa altura sou de novo atacada com novo vómito de verborreia inusitada, um
bafo quente e corrosivo que me atinge em cheio.
A
estupidez nunca dá tréguas, por isso é infinita. Não compreende, não aceita,
não vê. É um Ciclope cego, um bloco de granito contra o qual embatemos sem o
conseguir transpor.
Preparo-me
para nova luta. Avanço com a guarda alta e desfiro uns jabs, cross e uppercuts.
Ela recua mas não tomba. Um suor escorregadio cruza-me o rosto e a boca fica
nua e seca como um saco árido e vazio sem as palavras despejadas.
Tento
não desistir da luta contra a estupidez humana. Às vezes transformo-me num
ninja indecifrável e rondo-a sorrateiramente à procura de um qualquer modo de a
derrotar.
Mas que
resultado é possível contra este adversário temível?
No fim,
ensaio um sorriso ensolarado a entreabrir-me os lábios. Foco o olhar na
distância a calcular o voo e a mente parte vestida de silêncio.
Na minha
frente a estupidez incha e dá o braço à irritação.
Não sei bem como medir o olhar que me deitaste,
quando passaste por mim num matraquear de saltos na calçada. Nos poucos
segundos em que te embaraçaste na multidão, ficaste presa em mim, como um
pássaro aflito a bater asas. Foi um breve espaço no tempo, uma cena de cinema
em câmara lenta.
Eu olhei-te como se pudesse ter levitado da enxerga
às riscas, pejada das mantas da caridade pública, quase a tentar encarnar-te e
seguir contigo. Reconheci-me no passo bailado a cantar esperanças, na roupa a
cheirar a flores de laranjeira, no cabelo a esconder um olhar aceso.
Quis seguir contigo e agarrar-me aos poemas que os
teus lábios deixavam adivinhar, enquanto te diluías nas sombras de tantos
vultos. Tu pisaste as pedras rumo ao desconhecido e eu reconheci o percurso
anteriormente feito pelo meu corpo.
Escondo-me nos cartões duma publicidade que já não
me faz falta, olhando-te através das letras dos jornais, que me falam de um
mundo que já não é o meu.
Acomodo-me rente à muralha a pensar como serás, o
teu corpo esticado num sofá a tecer sonhos. Um sofá, algo extraordinário, uma
peça onde se pode ler, dormir, amar e sonhar...sempre. Antes, eu nunca teria
percebido como um objeto de 4 letras, poderia ser tão importante.
Tenho este canto onde ainda sonho quando consigo
fugir à aspereza da pedra e à frialdade duma noite invernosa. Afinal, o sonho
tem essa impecável imaterialidade de tudo o que nunca será.
Mas tu passas agarrada aos teus sonhos de sofá, do
qual não sei a cor. Passas e lanças-me esse olhar que não é nem de nojo, nem de
pena. É antes um arrepio que te vem da pele e te sobe aos olhos, deixando-os a
refletir sombras e desvaires.
Da tua mala, quando roçaste a pedra, saiu uma lufada
quente e reluzente, um aroma doce a sacudir-me a memória e a despertar uma
confusão aguda no estômago faminto.
Mas apaziguo-a rápido, habituada que estou a cercear
qualquer devaneio que o corpo solicite.
Não costumo reparar nos vultos que me enchem os dias
de sons e odores. Mas hoje, tu passaste e foi como se fosses eu, num outro tempo,
numa outra vida.
Apeteceu-me levantar deste fim de mim, correr atrás
de ti e gritar-te:
- Cuidado, a pior coisa na tua vida será matares os
sonhos.
Virou a esquina e o
perfume atingiu-a como um soco violento. Parou aturdida, a mão comprimindo o
estômago, a respiração ofegante, o coração tornado corcel em fuga insana. O
aroma era inebriante, quase sufocante de tão pungente e intenso.
Respirou fundo, muito
fundo, as narinas tremendo, na vã
tentativa de que a fragância se diluísse nas veias sem a entorpecer demasiado.
Andou um pouco,
cambaleante com a intensidade da resposta que o corpo lhe transmitia.
A rua era inclinada com
meia dúzia de bancos a culminar a subida. Sentou-se e voltou a aspirar o ar
limpo da madrugada azul. Uma brisa odorífera, chicoteou-a levemente numa
carícia perversa e proibida e uma flor caiu da árvore e escorregou-lhe levemente
por um fio de cabelo, fez um percurso em espiral e aterrou-lhe nos lábios.
Voltou a sentir o
formigueiro intenso nas narinas e a resposta febril que o aroma desencadeava em
si.
As flores nas árvores
executavam um mágico e sensual bailado, agitando-se, lançando-se em voo
feérico, dispersando-se, tombando e voltando a remoínhar rua abaixo.
Estremeceu inquieta,
assustada pelas sensações transmitidas pelas flores da laranjeira. Encostou-se
no banco, a saborear em pequenos travos os raios de sol perfumados.
Tantas lembranças a
marcarem-lhe o corpo como cicatrizes mal curadas!
Tinha dias em que
jogava um jogo: o do esquecimento. Nesses dias, o jogo era misericordioso com
ela. Marcava-lhe a mente com um torpor sólido e palpável, uma espécie de
cadeado que impedia as memórias de se escapulirem do local onde as guardava.
Era assim que se sentia
quando nessa manhã caminhava aérea e quase intangível, antes de ter virado a
esquina.
Depois ...tudo se
transfigurara. O perfume intenso das flores tinha sido a chave que criara o
dilúvio, a tempestade de emoções. De repente os muros ruíram e as lembranças
jorraram em tropel, desnudando-a, violentando-a, derrubando-a sem qualquer
pudor.
Fora num dia assim que
o conhecera. Corria uma primavera quente e insidiosa, com a natureza a brotar
por todo o lado num parto incessante e quase lúbrico. Sentia-se especial, com o
amor próprio a cantar de prazer, à custa de um corpo flexível e de um novo
penteado. Os recentes caracóis pareciam espirais de um desejo pagão a
volutearem ao longo da face. Tinha uma leveza exaltada, nos movimentos quase
lascivos de tango dançado e um apetite voraz de um não sei quê a queimar-lhe a
pele.
Fora a casa de uma
amiga que regressara de uma longa estadia no estrangeiro, com o intuito de
passar uma boa tarde a trocar experiências. Ela apresentara-lhe o irmão mais
novo, um menino maroto como carinhosamente o apelidou.
Ainda hoje se pergunta
o que aconteceu. Seria a magia do dia primaveril, uma febre grassando-lhe o sangue
ou o princípio de uma demência desconhecida?
Ambos se olharam e
mesmerizaram.
A partir dessa altura
tudo o que a rodeava se tornou difuso, distorcido. Tinham brincado com as palavras
enquanto os olhos diziam outras. A tensão entre eles era tão explícita que
deformava o espaço e o tempo.
A vida fora
reinventada. Pareciam falar uma língua primitiva feita com os corpos em vibrações e cicios. Ela
ardia, o corpo em chama a palpitar num louco crescendo, os mamilos a
sobressaírem triunfantes na blusa branca. Tinham sorrisos comedidos mas a
sofreguidão de um beijo já corria neles. As cores em redor tornaram-se
psicadélicas num alucinado e gritante tumulto. Magentas cinabrinos, vermelhos
lacre, brancos cintinlantes, explodiam numa atávica orgia de sentidos.
Lembrava-se que tentara
manter-se racional mas falhara , corpo e mente enlouquecidos num prazer tão
antigo como o tempo. Duas horas de conversa tinham parecido cinco minutos
mágicos e intemperados de lava ardente.
Pensando bem, não se
lembrava de como a certa altura tinham ficado momentaneamente sós na pequena
sala, que de súbito não era mais do que um casulo quente e magnético.
Descontroladamente e
sem pensar tinham-se aproximado. O beijo fez os corpos embaterem e
fundiram-nos. Foi sôfrego, voraz, canibalesco. O abraço selvagem que os uniu,
tornou-os em cometas, supernovas, buracos negros.
A partir dessa altura
nenhum dos dois voltou a ser como dantes.
Nos primeiros dias que
passaram sem se ver, ela adoeceu de inquietação, o corpo a ressacar a falta do
beijo. Não entendia aquele desejo enorme, aquela loucura quase demoníaca que a
possuíra. Sentia-se uma deusa por ele também a desejar, a ela uma mulher de 52
anos já vividos, ele ainda um jovem com os 35 anos bem notórios no corpo
musculado e naquela fragante e viciante
masculinidade com que a cingira.
Passaram horas ao
telefone, alheios a tudo o mais, na inútil tentativa de compreenderem o que
lhes acontecera. Ao mesmo tempo iam descobrindo quem eram e criando entre eles
elos que como gavinhas cada vez mais os enlaçavam.
Ao princípio achara que
era só desejo, uma incontrolável atração que os unira. Mas a primeira vez que
fizeram amor, ele tremera como uma criança e ela chorara de uma só vez os
sonhos perdidos e as mágoas rebeldes.
No quarto onde o sol
lhes pintava os corpos com fórmulas de alquimista, compreenderam que o desejo
se tornara paixão. Da janela viam o pequeno pátio onde as laranjeiras se
enchiam de frutos doces prenhes de sumo, explodindo depois numa florescência
impetuosa.
Impossível não
tactearem cada milímetro do corpo e se devorarem com beijos sempre que estavam
perto. A suas bocas conheciam todos os recantos e sem tabus ou preconceitos
desvendavam todos os segredos. No fim gritavam sempre êxtases, murmurando
depois versos no fundo da boca. A carência de um pelo outro era quase uma prece
aflita, um cântico de alarme.
Ambos se sentiam
virgens de tudo, inventando e reinventando a palavra amor. Porque era de amor
que se tratava.
Sabia que o tinham
percebido no decorrer dos meses e na morte anunciada em cada ausência.
Tantas vezes ela ia ao
seu encontro e ao entrar na casa saltava-lhe para o colo como uma menina
ladina. Ele ria sempre subjugando-a com beijos e chamando-lhe miúda louca, a
sua adolescente.
Mas a pouco e pouco a
preocupação de um pelo outro aumentava, os planos começavam a perturbá-la e a
dor de não se terem sempre, iniciou uma rota feroz.
Ela começou a
indagar-se, perturbada pelo que fazia. Sempre que passeavam enlaçados, sentia
entre eles silêncios rezados que amargavam o pôr do sol.
Sempre fora uma mulher
sem pecados a não ser os da imaginação. Há muito que o seu casamento ruíra e o
marido seguira um outro rumo sem olhar para trás. Não havia filhos para lhe
lembrar o passado e ela nem sequer pensara em encontrar alguém. E ali estava
ele, com uma noiva à espera pronta a dar-lhe o que tanto ambicionava: um filho.
Sentia-se culpada, com
sentimentos a baralhar tudo invadindo-lhe algo que fantasiosamente construíra.
Ela podia bastar-lhe mas nunca lhe satisfaria o sonho.
Num dia de horizontes
rubros tinha-o esperado, ansiosa como sempre. Música tocava, canções que lhes
punham lágrimas nos olhos enquanto os corpos suados escreviam antigas runas e
os rios entre as suas pernas desaguavam sempre num estremecer incontido. Ela
juncara a cama de flores que agora lhes perfumavam os corpos. Inúmeras velas
criavam caminhos de luz e sombra, contando
a história antiga do amor entre um homem
e uma mulher.
Foram frementes as
carícias desenhadas com a mãos. Intensas, poderosas, loucas, a anunciar o
apocalipse. Mais uma vez mergulhara nos olhos dele e tentara esgueirar-se pelas
pupilas negras e magnéticas. Tinha querido arder nelas enquanto se desfazia no
corpo dele. Cheirou-o como fera, embrenhou-se naquele cabelo rebelde e cingiu-o
arrebatadamente. E amaram-se vezes sem fim, no eco dos tempos primitivos, como
um pássaro aflito num louco bater de asas.
O corpo dela tinha sido
instrumento onde ele com mestria tocara acordes rasgados e profundos num
inimaginável adagio. E no fim, quando gritaram em paroxismo os nomes um do
outro, ela libertara-o.
Durante muito tempo o
corpo dele ficou preso no dela numa despedida muda. Não deixara que as súplicas
a demovessem. Sentira-se oca mas amava-o demasiado para lhe negar o sonho.
Naquele dia ele partiu
primeiro e levou-a colada à sua pele. A mulher que entrara ficou embrulhada na
colcha da cama e no perfume das flores que desenhavam a marca dos corpos.
Quando por fim saíra, levava os braços enlaçados no corpo à procura do dele.
Por dentro a escuridão avançava, a corroê-la numa agonia que ela queria arredar
correndo como louca e desfazendo a decisão. De olhos postos na porta fechada,
achava que a dor iria acalmar com o tempo, com os anos, com outras primaveras a
florir.
Mas a dor nunca tinha
passado ou abrandado, num ritual que começava ao acordar e só a largava altas
horas quando o cansaço da insónia a vergava.
É certo que erguera
barreiras e se habituara a ficar entorpecida, perdida em pensamentos.
Mas bastara o aroma
súbito das laranjeiras em flor para que a história daquele intenso amor e dos
laços que cortara cerce e sem hipótese de retorno a devorassem como parasitas a
roerem-lhe os ossos.
Passados doze anos,
sentada no banco banhado pelo odor fulgurante, sabe que a dor lhe traz algo de
bom. Com ela reviveu cada minuto do amor perdido e parece-lhe sentir de novo as
mãos dele, fazendo-a e defazendo-a como barro moldável.
Nada mudou nela apesar
dos cabelos brancos. Adolescente aos 52 e adolescente depois dos 70. Uma alma juvenil
e ébria de paixão a espreitar nos seus olhos.
Devagarinho, enquanto o
entardecer arrefece o perfume das flores, retira uma folha meio amarelecida do
bolso do casaco. Desdobra-a com o cuidado de quem toca uma renda preciosa, as
mãos tremendo como uma virgem em dia de descobertas.
Os lábios que sabem bem
o gosto de um primeiro beijo nunca esquecido, recitam o último poema que ele
lhe deixou.