quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Ontem






Ontem escrevi sobre ti
sobre os tempos em que me delineavas a anca
com dedos firmes e aguerridos
e os deslizavas pela minha cintura
numa espécie de morte anunciada.
Tinhas sempre um medo de me perder
agarrado a ti, como se fosses um eterno náufrago.
Eu escondia entre as pernas a impaciência
e rugia palavras proibidas em pressas desvairadas.
Ontem senti na boca o teu sabor a sal
como se fosse a última onda
de uma maré imperfeita.


© Margarida Piloto Garcia in-ANTOLOGIA DE POESIA CONTEMPORÂNEA VOL VI "ENTRE O SONO E O SONHO"-publicado por CHIADO EDITORA-2015


© Tela de Suhair Sibai


  

domingo, 17 de novembro de 2013

Declaração




Declaro que te espero
nos dias em que a chuva me mitiga o fogo
nas noites em que o corpo em rebuliço
se entretém em danças e litanias solitárias.
Não venhas se me temes
ou se a tua fornalha não anseia pelo meu mar interno.
Tenho em mim a telúrica força de uma valquíria
e ouso defrontar o teu guerreiro altivo de canto rouco
e a tua espada acesa a queimar-me desde a boca
até ao vórtice onde o desejo renasce
num devorar repetitivo e lancinante.
Declaro que te espero
e sempre te esperei.
Esta música da pele tem um travo doce de devaneio juvenil
e a carência vivida das inclementes horas.
Declaro que te quero
assim, neste final que chega manso e louco.
Por isso
antes que os deuses te roubem ao insano desejo
vem.


© Margarida Piloto Garcia-in A ESSÊNCIA DOS SENTIDOS I-publicado por EDIÇÕES PAULA OZ-2013


terça-feira, 12 de novembro de 2013

A estupidez humana





Estupidez, aquela, a humana que Einstein disse que era infinita. Nada tem a ver com literacia ou capacidade  intelectual. Para além de infinita é pegajosa e traz um arrepio gelado à minha pele.
Enfrento a estupidez  de alma lavada, nua de preconceitos e juízos. E ali fico, à espera que ela suma no chão, diluindo-se numa poça líquida. Mas a estupidez ergue-se e como num filme de ficção assume forma humana e cresce para mim.
Vou buscar argumentos implacáveis, fatais e irrepreensíveis. Esgrimo palavra contra palavra, num ballet rítmico cheio de pliés, cabriolés, jetés. A meio da dança a estupidez abranda e eu deixo a irritação relaxar.
Mas nessa altura sou de novo atacada com novo vómito de verborreia inusitada, um bafo quente e corrosivo que me atinge em cheio.
A estupidez nunca dá tréguas, por isso é infinita. Não compreende, não aceita, não vê. É um Ciclope cego, um bloco de granito contra o qual embatemos sem o conseguir transpor.
Preparo-me para nova luta. Avanço com a guarda alta e desfiro uns jabs, cross e uppercuts. Ela recua mas não tomba. Um suor escorregadio cruza-me o rosto e a boca fica nua e seca como um saco árido e vazio sem as palavras despejadas.
Tento não desistir da luta contra a estupidez humana. Às vezes transformo-me num ninja indecifrável e rondo-a sorrateiramente à procura de um qualquer modo de a derrotar.
Mas que resultado é possível contra este adversário temível?
No fim, ensaio um sorriso ensolarado a entreabrir-me os lábios. Foco o olhar na distância a calcular o voo e a mente parte vestida de silêncio.
Na minha frente a estupidez incha e dá o braço à irritação.


© Margarida Piloto Garcia






quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Poema pouco sereno






Não há serenidade  no meu olhar.
Intrépidas são as buscas e eternos os porquês.
Não esperes do meu corpo
a mansidão das searas flutuantes
porque ele tem pressas e tumultuosas vagas.
Não busques em mim
a paz contemplativa do fim dos tempos.
Tenho rubras esperas a tingirem-me os lábios
e abraços esfomeados agarrados a mim.
Talvez um dia possas dizer
que o meu corpo é uma casa
da qual sabes os recantos, as esquinas e os lugares sagrados
ou o ultimo reduto onde comes e dormes
enquanto as estações dão a volta ao mundo.
Mas não teças dialéticas sobre o que quero e sou
e não enchas de balas
o que apesar das palavras noturnas e dos desejos camuflados
ainda não é teu.


© Margarida Piloto Garcia






quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Na noite




Nas noites que trazem o cheiro do alecrim
espreguiço-me no lençol de linho da cama alva.
Ainda há pouco me lançavas no ouvido
papagaios coloridos de papel
e eu soltava-os ao ritmo da imaginação
que é de tudo raíz, fruto e flor.
A felicidade caminha em mim
como se fosse um animal sedento
e eu espreguiço-me de novo
deixando pequenas nesgas de luar
marcarem o meu corpo.
E a tua boca é sagrada
porque sabe comer as luas e torná-las deuses.
E a tua boca é uma fera
que bebe o meu regato, come a minha flor nascida
e se afunda exausta nas grutas palpitantes.
O meu suspiro entra e sai da tua boca
e tudo sabe a sal, a mosto, a chuva.
Tudo sabe a desassossego, a música habitada,
a felicidade a consumir antes que acabe o prazo.
Acordo do meu sonho e tudo sabe a nós.



© Margarida Piloto Garcia in AUDÁCIA DOS SENTIDOS-publicado por EDITORA UNIVERSUS-2013


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Morte anunciada






 Morrias
em manhãs odoríferas grávidas de imaginação.
Morrias
nas tardes espúrias e pálidas que a nada chegam
Morrias
singrando as noites estultícias e afundando a vida.
Na tua boca as palavras expiraram
e os trechos cursivos estiolaram sem as tuas mãos..
De olhos voltados para dentro
estrangulaste sonhos e desejos.
Agora corro à procura do rio que sem pressas nem destino
me leva a outras margens
e sondo-me na esperança de que o sentimento
me acenda
me varra
me sugue como um vampiro.
Enquanto isto, sem mesmo te dares conta
tu morrias-me

© Margarida Piloto Garcia


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A pior coisa na vida





Não sei bem como medir o olhar que me deitaste, quando passaste por mim num matraquear de saltos na calçada. Nos poucos segundos em que te embaraçaste na multidão, ficaste presa em mim, como um pássaro aflito a bater asas. Foi um breve espaço no tempo, uma cena de cinema em câmara lenta.
Eu olhei-te como se pudesse ter levitado da enxerga às riscas, pejada das mantas da caridade pública, quase a tentar encarnar-te e seguir contigo. Reconheci-me no passo bailado a cantar esperanças, na roupa a cheirar a flores de laranjeira, no cabelo a esconder um olhar aceso.
Quis seguir contigo e agarrar-me aos poemas que os teus lábios deixavam adivinhar, enquanto te diluías nas sombras de tantos vultos. Tu pisaste as pedras rumo ao desconhecido e eu reconheci o percurso anteriormente feito pelo meu corpo.
Escondo-me nos cartões duma publicidade que já não me faz falta, olhando-te através das letras dos jornais, que me falam de um mundo que já não é o meu.
Acomodo-me rente à muralha a pensar como serás, o teu corpo esticado num sofá a tecer sonhos. Um sofá, algo extraordinário, uma peça onde se pode ler, dormir, amar e sonhar...sempre. Antes, eu nunca teria percebido como um objeto de 4 letras, poderia ser tão importante.
Tenho este canto onde ainda sonho quando consigo fugir à aspereza da pedra e à frialdade duma noite invernosa. Afinal, o sonho tem essa impecável imaterialidade de tudo o que nunca será.
Mas tu passas agarrada aos teus sonhos de sofá, do qual não sei a cor. Passas e lanças-me esse olhar que não é nem de nojo, nem de pena. É antes um arrepio que te vem da pele e te sobe aos olhos, deixando-os a refletir sombras e desvaires.
Da tua mala, quando roçaste a pedra, saiu uma lufada quente e reluzente, um aroma doce a sacudir-me a memória e a despertar uma confusão aguda no estômago faminto.
Mas apaziguo-a rápido, habituada que estou a cercear qualquer devaneio que o corpo solicite.
Não costumo reparar nos vultos que me enchem os dias de sons e odores. Mas hoje, tu passaste e foi como se fosses eu, num outro tempo, numa outra vida.
Apeteceu-me levantar deste fim de mim, correr atrás de ti e gritar-te:

- Cuidado, a pior coisa na tua vida será matares os sonhos.



© Margarida Piloto Garcia

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Lembrança





Lembro-me sempre de ti.
Crescem-me ramos ao longo dos braços
e as minhas mãos são maçãs carnudas e aromáticas
a desfiar carícias de antigamente.
Abraço a tua lembrança
com os lábios acerejados onde as flores brotam
ao ritmo da respiração lenta e sincopada
para esquecer as arritmias do nosso cavalgar.
Cada dia passado na tua ausência
abre o rumo da fome dos sentidos
e deixa pegadas que o tempo não apaga.
Lembro-me sempre de ti
dos dias em que as sombras
eram apenas o nome dos nossos corpos acesos
e das noites em que morríamos nos gritos
a ecoarem no silêncio dos cheiros enlaçados.
Mas não deixo que a lembrança me desvende o olhar
e me roube a paixão de que sou feita.
De mim só eu sei.
O resto são artifícios, rendas que os outros tecem.


© Margarida Piloto Garcia



quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Amor




Amo-te na língua de Camões
naquela que nos fez correr mundo e ser aventureiros.
Amo-te em francês
em inglês, em farsi ou urdu.
Amo-te no árabe das noites de deserto
debaixo de um céu a rebentar-nos estrelas nos olhos.
Ich liebe dich de encontro aos tijolos do que resta do Muro de Berlim
e je t’aime nas ruas de Montparnasse na primavera parisiense.
Amo-te em mandarim, em japonês e em checo.
Juntamos os rios e desaguamos numa foz de paz e ternura
após termos galgado vivos e apaixonados as cataratas do Niagara.
Não importa se somos Amazonas, Tejo ou Mississipi
apenas os dedos sabem o percurso do rio.
Te quiero nas ruas de Buenos Aires, num tango lascivo a escorrer
leite e mel e a deixar na boca o sabor da pele em chamas.
Beijo-te em mil línguas numa Babel aleggro ma non troppo
a deixar embeber o meu ritmo no teu.
O beijo soa em coreano sem ponto cardeal a separá-lo
em dinamarquês ou hebraico, apenas beijo com a única língua
que conheço e domino. E essa é minha mas pode também
ser tua, num encontro onde o mundo derruba as barreiras.
Numa esplanada aqui ou nos antípodas
numa praia onde só a areia sabe desenhar-nos os corpos
simplesmente amo-te  na linguagem universal do amor.



© Margarida Piloto Garcia in "VI ANTOLOGIA DE POETAS LUSÓFONOS"-publicado por FOLHETO EDIÇÕES-2014



domingo, 8 de setembro de 2013

Depois de ti




Depois de ti não há mais palavras.
O tempo é ladrão que tudo rouba
sem que em troca nos dê o deus do esquecimento.
Depois de ti não ficaram terras por cultivar
onde eu pudesse ao amanhecer
vir espreitar as papoilas rubras.
Não ficaram mais mistérios por desvendar
porque já me tinhas navegado até ao último horizonte.
Depois de ti a noite já não tem pecados
nem sonhos, nem estrelas a chamarem por mim.
Não conheço mais fogos esventrando as madrugadas
nem as sinfonias me acordam de noite
desejosas que se escreva um novo andamento.
Depois de ti nada em mim é sobressalto.
Nem as sombras da pele
nem as comissuras dos lábios
nem o reflexo dos olhos.
Nada se atreve a existir.
Alimento-me das memórias
e minto-te e minto-me porque o pensamento é matreiro
e cerca de ciladas o coração.
Nada sei do fingimento do poeta
apenas do que restou depois de ti.


© Margarida Piloto Garcia  in "ESSÊNCIA DO AMOR III"-publicado EDIÇÕES VIEIRA DA SILVA-2015





sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Nome





Soletro o teu nome
devagarinho
como se de uma reza se tratasse
como se a fragilidade de que o revisto
fosse em mim a força do amor.
Digo-te em sílabas
espaçadas
impregnadas dos dias em que te leio
e das noites em que irremediavelmente te espero.
Há dentro de mim um rio
que inunda as margens e me transborda.
E enquanto te digo letra a letra
o teu nome é meu mesmo que o teu corpo não seja
mesmo que nós não sejamos donos de nada



© Margarida Piloto Garcia in "PALAVRAS DE VELUDO"-publicado por ORQUíDEA EDIÇÕES-2015



segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Horas






9 da manhã.
Medo na garganta, fogo na pele, olhar impúdico.
Apressa o passo, atiça o fogo, a língua a arder, a boca aos ais

10 da manhã.
A mão na perna, a urgência nos olhos, o calor dele, a fome dela.
Corpos que chocam, beijos vorazes comem por dentro
lambem por fora, desnudam prazeres.
Derrete as mãos no cabelo dele, esculpe-o a cinzel, procura-lhe a vida.
No aperto dele, quase um temor, uma reverência.
Despe-a e encontra-a.
Rasga a fronteira, estala o pudor, vai-se mais fundo.
Solta o gemido, dança-o nas pernas, sorve-lhe o âmago
abre-se nele.

12 horas e o sol empina no horizonte.
Cavalgam ondas na cama anónima
e a tarde  lúbrica estende-os no  chão.
Música toca, velas acendem, lençóis engelham no calor do cio.
Palavras loucas rugem na tarde novos caminhos e desafios.
Ternos abraços, corpos de aço, laços e passos.
As horas escorrem suor e seiva, o grito é língua entre os cicios.
Morre mil vezes, parte-se em duas, faz parte dele.
Olhos de deusa, mítico oculto, fera voraz.
Há arremessos na tarde cálida, galopes ébrios , ventres a arder.

E chega a hora e a fome fica, rasga o abraço, parte o enlace
e mora a saudade no último beijo



© Margarida Piloto Garcia-in A ESSÊNCIA DOS SENTIDOS I-publicado por EDIÇÕES PAULA OZ-2013

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Em mim





Insubordinada de mim mesma
a boca a calar por fora
o grito a rasgar por dentro.
Intemperados  apelos escondidos
no veludo cândido dos olhos.
Insondáveis iras a escaparem-se
dos gestos dançados das palavras.
E no corpo, última fronteira
a eterna reza do evangelho da paixão


© Margarida Piloto Garcia-in A ESSÊNCIA DOS SENTIDOS I-publicado por EDIÇÕES PAULA OZ-2013

domingo, 28 de julho de 2013

Flor de laranjeira




Virou a esquina e o perfume atingiu-a como um soco violento. Parou aturdida, a mão comprimindo o estômago, a respiração ofegante, o coração tornado corcel em fuga insana. O aroma era inebriante, quase sufocante de tão pungente e intenso.
Respirou fundo, muito fundo, as narinas tremendo,  na vã tentativa de que a fragância se diluísse nas veias sem a entorpecer demasiado.
Andou um pouco, cambaleante com a intensidade da resposta que o corpo lhe transmitia.
A rua era inclinada com meia dúzia de bancos a culminar a subida. Sentou-se e voltou a aspirar o ar limpo da madrugada azul. Uma brisa odorífera, chicoteou-a levemente numa carícia perversa e proibida e uma flor caiu da árvore e escorregou-lhe levemente por um fio de cabelo, fez um percurso em espiral e aterrou-lhe nos lábios.
Voltou a sentir o formigueiro intenso nas narinas e a resposta febril que o aroma desencadeava em si.
As flores nas árvores executavam um mágico e sensual bailado, agitando-se, lançando-se em voo feérico, dispersando-se, tombando e voltando a remoínhar rua abaixo.
Estremeceu inquieta, assustada pelas sensações transmitidas pelas flores da laranjeira. Encostou-se no banco, a saborear em pequenos travos os raios de sol perfumados.
Tantas lembranças a marcarem-lhe o corpo como cicatrizes mal curadas!
Tinha dias em que jogava um jogo: o do esquecimento. Nesses dias, o jogo era misericordioso com ela. Marcava-lhe a mente com um torpor sólido e palpável, uma espécie de cadeado que impedia as memórias de se escapulirem do local onde as guardava.
Era assim que se sentia quando nessa manhã caminhava aérea e quase intangível, antes de ter virado a esquina.
Depois ...tudo se transfigurara. O perfume intenso das flores tinha sido a chave que criara o dilúvio, a tempestade de emoções. De repente os muros ruíram e as lembranças jorraram em tropel, desnudando-a, violentando-a, derrubando-a sem qualquer pudor.
Fora num dia assim que o conhecera. Corria uma primavera quente e insidiosa, com a natureza a brotar por todo o lado num parto incessante e quase lúbrico. Sentia-se especial, com o amor próprio a cantar de prazer, à custa de um corpo flexível e de um novo penteado. Os recentes caracóis pareciam espirais de um desejo pagão a volutearem ao longo da face. Tinha uma leveza exaltada, nos movimentos quase lascivos de tango dançado e um apetite voraz de um não sei quê a queimar-lhe a pele.
Fora a casa de uma amiga que regressara de uma longa estadia no estrangeiro, com o intuito de passar uma boa tarde a trocar experiências. Ela apresentara-lhe o irmão mais novo, um menino maroto como carinhosamente o apelidou.
Ainda hoje se pergunta o que aconteceu. Seria a magia do dia primaveril, uma febre grassando-lhe o sangue ou o princípio de uma demência desconhecida?
Ambos se olharam e mesmerizaram.
A partir dessa altura tudo o que a rodeava se tornou difuso, distorcido. Tinham brincado com as palavras enquanto os olhos diziam outras. A tensão entre eles era tão explícita que deformava o espaço e o tempo.
A vida fora reinventada. Pareciam falar uma língua primitiva feita  com os corpos em vibrações e cicios. Ela ardia, o corpo em chama a palpitar num louco crescendo, os mamilos a sobressaírem triunfantes na blusa branca. Tinham sorrisos comedidos mas a sofreguidão de um beijo já corria neles. As cores em redor tornaram-se psicadélicas num alucinado e gritante tumulto. Magentas cinabrinos, vermelhos lacre, brancos cintinlantes, explodiam numa atávica orgia de sentidos.
Lembrava-se que tentara manter-se racional mas falhara , corpo e mente enlouquecidos num prazer tão antigo como o tempo. Duas horas de conversa tinham parecido cinco minutos mágicos e intemperados de lava ardente.
Pensando bem, não se lembrava de como a certa altura tinham ficado momentaneamente sós na pequena sala, que de súbito não era mais do que um casulo quente e magnético.
Descontroladamente e sem pensar tinham-se aproximado. O beijo fez os corpos embaterem e fundiram-nos. Foi sôfrego, voraz, canibalesco. O abraço selvagem que os uniu, tornou-os em cometas, supernovas, buracos negros.
A partir dessa altura nenhum dos dois voltou a ser como dantes.
Nos primeiros dias que passaram sem se ver, ela adoeceu de inquietação, o corpo a ressacar a falta do beijo. Não entendia aquele desejo enorme, aquela loucura quase demoníaca que a possuíra. Sentia-se uma deusa por ele também a desejar, a ela uma mulher de 52 anos já vividos, ele ainda um jovem com os 35 anos bem notórios no corpo musculado  e naquela fragante e viciante masculinidade com que a cingira.
Passaram horas ao telefone, alheios a tudo o mais, na inútil tentativa de compreenderem o que lhes acontecera. Ao mesmo tempo iam descobrindo quem eram e criando entre eles elos que como gavinhas cada vez mais os enlaçavam.
Ao princípio achara que era só desejo, uma incontrolável atração que os unira. Mas a primeira vez que fizeram amor, ele tremera como uma criança e ela chorara de uma só vez os sonhos perdidos e as mágoas rebeldes.
No quarto onde o sol lhes pintava os corpos com fórmulas de alquimista, compreenderam que o desejo se tornara paixão. Da janela viam o pequeno pátio onde as laranjeiras se enchiam de frutos doces prenhes de sumo, explodindo depois numa florescência impetuosa.
Impossível não tactearem cada milímetro do corpo e se devorarem com beijos sempre que estavam perto. A suas bocas conheciam todos os recantos e sem tabus ou preconceitos desvendavam todos os segredos. No fim gritavam sempre êxtases, murmurando depois versos no fundo da boca. A carência de um pelo outro era quase uma prece aflita, um cântico de alarme.
Ambos se sentiam virgens de tudo, inventando e reinventando a palavra amor. Porque era de amor que se tratava.
Sabia que o tinham percebido no decorrer dos meses e na morte anunciada em cada ausência.
Tantas vezes ela ia ao seu encontro e ao entrar na casa saltava-lhe para o colo como uma menina ladina. Ele ria sempre subjugando-a com beijos e chamando-lhe miúda louca, a sua adolescente.
Mas a pouco e pouco a preocupação de um pelo outro aumentava, os planos começavam a perturbá-la e a dor de não se terem sempre, iniciou uma rota feroz.
Ela começou a indagar-se, perturbada pelo que fazia. Sempre que passeavam enlaçados, sentia entre eles silêncios rezados que amargavam o pôr do sol.
Sempre fora uma mulher sem pecados a não ser os da imaginação. Há muito que o seu casamento ruíra e o marido seguira um outro rumo sem olhar para trás. Não havia filhos para lhe lembrar o passado e ela nem sequer pensara em encontrar alguém. E ali estava ele, com uma noiva à espera pronta a dar-lhe o que tanto ambicionava: um filho.
Sentia-se culpada, com sentimentos a baralhar tudo invadindo-lhe algo que fantasiosamente construíra. Ela podia bastar-lhe mas nunca lhe satisfaria o sonho.
Num dia de horizontes rubros tinha-o esperado, ansiosa como sempre. Música tocava, canções que lhes punham lágrimas nos olhos enquanto os corpos suados escreviam antigas runas e os rios entre as suas pernas desaguavam sempre num estremecer incontido. Ela juncara a cama de flores que agora lhes perfumavam os corpos. Inúmeras velas criavam caminhos de luz e sombra,  contando a história antiga  do amor entre um homem e uma mulher.
Foram frementes as carícias desenhadas com a mãos. Intensas, poderosas, loucas, a anunciar o apocalipse. Mais uma vez mergulhara nos olhos dele e tentara esgueirar-se pelas pupilas negras e magnéticas. Tinha querido arder nelas enquanto se desfazia no corpo dele. Cheirou-o como fera, embrenhou-se naquele cabelo rebelde e cingiu-o arrebatadamente. E amaram-se vezes sem fim, no eco dos tempos primitivos, como um pássaro aflito num louco bater de asas.
O corpo dela tinha sido instrumento onde ele com mestria tocara acordes rasgados e profundos num inimaginável adagio. E no fim, quando gritaram em paroxismo os nomes um do outro, ela libertara-o.
Durante muito tempo o corpo dele ficou preso no dela numa despedida muda. Não deixara que as súplicas a demovessem. Sentira-se oca mas amava-o demasiado para lhe negar o sonho.
Naquele dia ele partiu primeiro e levou-a colada à sua pele. A mulher que entrara ficou embrulhada na colcha da cama e no perfume das flores que desenhavam a marca dos corpos. Quando por fim saíra, levava os braços enlaçados no corpo à procura do dele. Por dentro a escuridão avançava, a corroê-la numa agonia que ela queria arredar correndo como louca e desfazendo a decisão. De olhos postos na porta fechada, achava que a dor iria acalmar com o tempo, com os anos, com outras primaveras a florir.
Mas a dor nunca tinha passado ou abrandado, num ritual que começava ao acordar e só a largava altas horas quando o cansaço da insónia a vergava.
É certo que erguera barreiras e se habituara a ficar entorpecida, perdida em pensamentos.
Mas bastara o aroma súbito das laranjeiras em flor para que a história daquele intenso amor e dos laços que cortara cerce e sem hipótese de retorno a devorassem como parasitas a roerem-lhe os ossos.
Passados doze anos, sentada no banco banhado pelo odor fulgurante, sabe que a dor lhe traz algo de bom. Com ela reviveu cada minuto do amor perdido e parece-lhe sentir de novo as mãos dele, fazendo-a e defazendo-a como barro moldável.
Nada mudou nela apesar dos cabelos brancos. Adolescente aos 52 e adolescente depois dos 70. Uma alma juvenil e ébria de paixão a espreitar nos seus olhos.
Devagarinho, enquanto o entardecer arrefece o perfume das flores, retira uma folha meio amarelecida do bolso do casaco. Desdobra-a com o cuidado de quem toca uma renda preciosa, as mãos tremendo como uma virgem em dia de descobertas.
Os lábios que sabem bem o gosto de um primeiro beijo nunca esquecido, recitam o último poema que ele lhe deixou.

“ Quando fechar os olhos
tu virás amor e eu farei
do teu corpo a minha casa.
Nas tardes melancólicas
Beijarei os teus seios de deusa
e morrerei em ti, onde sempre me esperas.
As muitas luas que passarem
sobre as nossas bocas
soletrarão o teu nome
e o beijo ardente perdurará
na memória das flores de laranjeira.”



© Margarida Piloto Garcia-in BEIJOS DE BICOS-publicado por PASTELARIA ESTÚDIOS EDITORA-2013





sexta-feira, 19 de julho de 2013

Confiança





Sem que a dúvida te traia
confia em mim.
Desde a aurora a despontar no corpo
até ao ocaso dos desejos
segue a minha rota e peregrina-me.
Desde o dia em que as nossas palavras
caminharam de mãos dadas
até ao momento em que a carne se desprenda dos ossos
e estes sejam apenas cinza a amar os oceanos,
sempre confia em mim.
Não tenho mentiras a chocar contra os dentes
nem salivas que não sejam osculadas.
Trago um abraço pleno
feito de pele branca, onde espreitam janelas azuis.
Apenas te aconchego porque te quero rebelde
e largo-te do cimo da falésia numa liberdade
que será sempre tua.
Por isso, confia em mim.

© Margarida Piloto Garcia in "SOM DE POETAS"-publicado por PAPEL D'ARROZ-2015