quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Chocolate






Leva-te às alturas
esse pedaço de chocolate negro que mordes nos lábios túrgidos.
Escorre-te uma gota no canto da boca
e qual réptil, a tua língua recolhe-a e degusta-a.
Sentes borboletas no estômago e faíscas cintilantes
nos olhos, na mente, no teu eu.
O chocolate trouxe-te uma magia orgásmica
um arco-íris gritante, como um LSD natural.
Viajas noutra galáxia
onde traças sulcos quase negros numa pele firme e elástica.
Tens as pestanas coloridas desse rímel feito com o cacau dos deuses
e tracejas outra face húmida de saliva e suor.
Não queres acordar
presa de uma magia que oriunda de trabalho escravo
de algum modo também te aprisiona.

O pequeno pedaço já se foi, derreteu melado nas tuas entranhas.
Agora há uma paz melódica e translúcida
mas de uma tão erótica vibração, que te viciou.


Margarida Piloto Garcia



sábado, 5 de novembro de 2011

Girassóis



  “ Assim fremente e nua, a luz só pode ser dos girassóis. “


Eugénio de Andrade in “O outro nome da terra.”


O comboio leva-me e carrega os meus sonhos.
Num constante rolar o meu olhar atinge os campos
e os campos devolvem-me esse olhar.
Não sinto, porque sinto tanto que matei o sentir.
O comboio rola e leva-me à cidade onde me perco
e onde amo cada pequeno passo, dado sozinha ou ao teu lado.
Essa cidade vai-me abraçar e corroer a vida de paixão.
A beleza dela é uma epifania e um esplendor
que tu escangalhas quando me desfazes a alma.
Esse ego monstruoso esconde a tua fragilidade
e é por ela que me detestas
porque eu a sei, porque eu a sinto.
Mas a cidade ainda está longe e eu já antecipei a dor
sublimada em pequenos prazeres que me alucinam.

Estava a tentar deixar correr os olhos
no tremor do amarelo da paisagem.
E vejo-me solta, uma silhueta em alvoroço, cabelo ao vento
rodeada do dourado que me fere os olhos.
Tento não olhar, não sentir que corro através das flores
que me atraem e me chamam.
E de repente vejo, são girassóis, imensos, ondulantes
fazendo-me o apelo.
Sou transportada a uma selva louca de pétalas
que me prendem mais do que me afagam.

E é isso mesmo que se crava em mim, o sentimento da minha invisibilidade.

Tu não me vês e os girassóis são cegos.



Margarida Piloto Garcia in- Sob Epígrafe. Tributo a Eugénio de Andrade, publicado por TEMAS ORIGINAIS, 2023





Arte de Paul Schilliger






quinta-feira, 21 de julho de 2011

Prisão



Há uma certa crueldade
nas palavras que escreves com teclados estéreis.
Eu não vejo céus de estrelas
só ripas que me fecham os olhos e amortalham.
E é nesta minha quase sinestesia
que a dor explode em rubros clarões
com cheiros aveludados a cerejas carnudas.
Leio as palavras e quedo-me muda
enquanto os gritos me recortam em desenhos surrealistas.
Tento ir mais além, navegar no tsunami
mas este leito tem amarras
prende-me o pensamento, castra-me as emoções
chama-me louca, e possessivo, subjuga-me.
Sou um velho guerreiro, um espírito engelhado
de armas ferrugentas e cicatrizes virulentas
como ecos de uma viagem por entre guerras sem fim.
Levo o meu coração embrulhado num pequeno papel
amarrotado, fino, manchado e a desfazer-se.
Às vezes, penso que já não existem céus estrelados
e que o pôr do sol há muito se escondeu nas trevas.
Ouso despir a angústia a um corpo que desconheço
e pendura-la nos fantasmas que me mordem.
Algures, as palavras escritas com teclados, reclamam-me a alma.

Margarida Piloto Garcia-in POÉTICA III- publicado por EDITORIAL MINERVA-2013