terça-feira, 28 de julho de 2009

Crepúsculo



Deixa que a noite caia.
Sem pôr de sol ensanguentado
Sem brisas de promessas
Sem velas acesas
sombreando as paredes com chicotadas ébrias.
Deixa que a noite caia
e devagar se aniche nos corações aflitos.
Os pensamentos esfomeados
roem por dentro a vida
e tudo o que pintaste numa tela virgem
são borrões demoníacos
traços rasgados e sem sentido.
A ferida que vais talhando em ti
não pode ser fechada
e dela escorre a vida a pouco e pouco.
Deixa que a noite caia.
Encosta a cabeça na parede nua
e saboreia o último suor.
Já não sabes construir mais pontes
para esse castelo inexpugnável.
Cada segundo é uma bala
alojada bem fundo num corpo partido
sem amanhãs que o consertem.
Portanto não esperes
e solta as amarras que gemendo
prendem a vida numa tosca sátira.
Não vivas sonhos gastos
que o amanhã nunca trará.
E porque a luz do dia te assassina
com a raiva da ilusão
fecha os olhos vazios e apenas
deixa que a noite caia.

Margarida Piloto Garcia in- PALAVRAS DE CRISTAL-publicado por MODOCROMIA-2013

Foto de Alofredo Ventura de Sousa







quarta-feira, 22 de julho de 2009

Desencontros



.“ Não voltarei ao leito breve

onde quebrámos uma a uma

todas as frágeis hastes do amor”


Eugénio de Andrade in “ Obscuro domínio”


Jogo os desencontros
nas marés revoltas
tsunamis de querer.
Num simples batel
a minha alma rema inebriada
e eu nem ouço
as chicotadas duma voz que grita.
É triste o dealbar deste sol
que se transmuta e fere de morte
os escolhos de uma praia.
Os desencontros são cicuta
gotejada pouco a pouco.
À raiva acutilante
desse mar revolto
responde a calmaria de um céu sem estrelas
de um deserto de sentires.
Exausta, encalho na praia
onde me espera a solidão.
Mas não me importo!
Sou um Crusoe que só deseja
que os desencontros morram na última maré.



Margarida Piloto Garcia-in SOB EPÍGRAFE-TRIBUTO A EUGÉNIO DE ANDRADE-publicado por TEMAS ORIGINAIS, 2023



sexta-feira, 17 de julho de 2009

Sorriso




Dás-me um sorriso azul, feito de um mundo deslumbrante que não houve, carente de afectos e ternuras.As crianças têm esse sorriso, mas o teu, parece ainda mais ingénuo e esconde uma tristeza que se entranha e nos atrai como uma lua pálida.
Todas as noites escorrego de mansinho pela tua cama, abraço o teu corpo e sinto-o meu.Mas não descerro os olhos para não me aperceber da tua ausência.Que força me empurra, que poder me esmaga, a ponto da falta de uma palavra tua, ser a privação do ar que respiro?Tento varrer fantasmas para arranjar espaço para me emprestares os teus, e sigo murmurando ladaínhas.
Dás-me um sorriso azul e eu vergo, alquebro, bamboleando palavras cegas.


Margarida Piloto Garcia-in NÓS POETAS EDITAMOS-vol II-2013



Pintura de Richard Burlet






domingo, 12 de julho de 2009

Anjo





Esqueço-te nas noites negras.
Porque o ar que respiro
é fruto do teu beijo
Porque o teu beijo é vermelho
e traça marés na minha pele
Porque a minha pele ferve desejos
quando abres as asas da ilusão.
Esqueço-te nas noites negras.
Negras para não ver
Negras para não sentir.
Traço rumos à vida
quando tu abres essas asas de anjo
e fujo dessa sombra
cruzando labirintos de fascínio.
Quando me cegas
colo as minhas mãos nas tuas margens
e vivo os dias em tácteis cicatrizes.
Depois...
Esqueço-te nas noites negras.

Margarida Piloto Garciain NÓS POETAS EDITAMOS-vol II-2013


Web-art de Yolanda Botelho






domingo, 5 de julho de 2009

Palavras ao sol poente



Pendurei as palavras no estendal
bandeiras brancas desfraldadas
sob um sol maduro.
As gaivotas grasnaram ao longe
e os pássaros trinaram por cima das palavras.
Ao sol poente, os brancos
ganharam laivos sangrentos
e as palavras destilaram ódios e paixões.
Atenta ao vento quente
dum qualquer mês ensolarado
vigiei as palavras para que não fugissem
ou me fossem roubadas.
Porque há que as cuidar sem feri-las de morte.
Não deixar os lençóis de palavras
crestar violentamente
ou encarquilhar em chuvas de lágrimas.
As minhas são açoitadas no estendal
pela maresia do oceano vizinho.
Levanto-me da cadeira onde balanço os sonhos
e vigio as palavras.
Aqui e ali, estremeço quando o vento norte
me tenta rasgar as mais vivas
as que se tornaram em cores de sentimentos.
Entro em casa abrindo a porta da ilusão.
As ideias correm na minha frente
e fazem-me tocar nos lençóis de palavras.
Acaricio todo o estendal
e antes do anoitecer
embrulho-me rodopiando
nos mares multicolores de palavras.


Margarida Piloto Garcia

Foto de maz Gun





quinta-feira, 2 de julho de 2009

Trilho



Abro uma porta
e espreito.
Que longo é o caminho a percorrer!
Estendo um tapete de mágoas
e tento caminhar.
O sonho é sempre delirante.
Na realidade
encontro-me apenas
parada
à espera.

Margarida Piloto Garcia